TEXTO PARA APROFUNDAMENTO

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OS MILESIANOS E O NASCIMENTO DA FILOSOFIA

 Costuma-se dizer que a filosofia ocidental começou com os gregos. De fato, mas não na Grécia. Os primeiros filósofos cujos nomes chegaram até nós viveram perto de fins do século XVII a.C. em Mileto, uma cidade portuária situada na costa da Ásia Menor. Era, na verdade, uma colônia grega, mas localizada em um ponto em que forçosamente sofreria a influência de indivíduos de outras nacionalidades que viviam no interior – na Lídia, na Pérsia, na própria Babilônia. Não que isto nos ajude a compreender por que a filosofia começou então e onde, porquanto não há indicação de filosofia, como viemos a considerá-la, nessas culturas. A Índia ficava longe demais e as comunicações eram demasiado precárias para que julguemos plausíveis influencias originárias dessa fonte. No mundo antigo, considerava-se o Egito como a origem da matemática, como a Babilônia o era da astronomia ( os movimentos aparentes dos corpos celestiais eram registrados em tabuinhas de argila). O emprego da matemática pelos egípcios era considerado tão importante que os gregos tendiam a considerar que, qualquer compatriota seu que mostrasse capacidade matemática e espírito de inovação, devia ter estudado naquele país. Consta de documentos que Tales, o primeiro dos denominados filósofos milésios, dirigiu-se para o Egito. De modo geral, é provável que o tenha feito. Essas influencias, contudo, combinadas com idéias religiosas e mitológicas endêmicas entre os gregos, de alguma maneira geraram a filosofia.

Mas o que foi que geraram? Aristóteles disse que a filosofia começa com o senso de maravilha e há certamente indicação disto no pensamento dos primeiros filósofos gregos.Conta-se que Tales, que viveu por volta do ano 600 a.C., afirmava que todas as coisas estavam repletas de deuses e há numerosas referências a certas coisas como divinas em filósofos subseqüentes, sem que isso implicasse uma atitude religiosa especifica. A natureza era simplesmente considerada como algo divino.ao mesmo tempo, a alegação de Aristóteles de que Tales dissera que o “primeiro princípio” de todas as coisas era a água, e a tese subseqüente proposta por Anaxímenes, sucessor de Tales, de que as diferentes matérias são formadas de ar mediante processos recíprocos de condensação e rarefação, parecem ciência primitiva – uma tentativa antiga de identificar a natureza básica da realidade física e explicar como os fatos observáveis de coisas físicas são derivados das mesmas. Ainda assim, o mais longo dos três fragmentos que temos dos escritos de Anaxímenes (se foram escritos) diz que o ar envolve todo o mundo, da mesma maneira que nossa alma, “sendo ar”, nos mantém íntegros e nos controla. O que quer que mais fosse, a alma era para os gregos o princípio da vida. O ar ou a respiração eram as indicações mais claras da vida. Daí a conexão entre alma e ar. A implicação, porém era que o mundo em geral possuía também vida e alma. Se assim era, a escolha do ar por Anaxímenes como matéria básica não teria sido determinada exclusivamente por considerações físicas. Entre pensamento seria uma mistura de diferentes elementos.

Falei acima em fragmentos. Isto é tudo que temos dos escritos dos denominados filósofos pré-socráticos, os filósofos que antecederam Sócrates. Esses fragmentos foram preservados por autores gregos posteriores, nem todos os quais sentiam um claro interesse pela história do pensamento. Coube a Aristóteles demonstrar, pela primeira vez, um interesse sistemático pela história de seu tema, mais tarde evidenciando também por Teofrasto, seu principal discípulo. Comentários gregos sobre Aristóteles, como, por exemplo, os de Simplício no século VI d.C., citam às vezes trechos de filósofos mais antigos. A extensão das citações, no entanto, é obscura (situação esta em nada melhorada pela ausência de aspas em grego).Há leituras variantes e testemunhas de confiabilidade desigual, às vezes extraídas de filósofos de outras orientações que se referiram a colegas seus mais antigos, ocasionalmente com aprovação quando não com criticas, mas com grande freqüência para seus próprios fins.Tudo isso tornou o estudo da filosofia antiga dependente do trabalho de eruditos,em especial do grande sábio alemão Herman Diels, que, na passagem deste século, publicou a primeira edição do Die Fragmente der Vorsokratiker, no qual se basearam todas as coletâneas subseqüentes e observações sobre os velhos filósofos gregos. Por outro lado, isto significa que mais ou menos todas as afirmações sobre esses filósofos devem ser acompanhadas da ressalva “se são corretas nossas fontes”. Essa ressalva deve ser levada sempre em mente na leitura do que diremos a seguir.

Dados esses fatos sobre o pensamento de Tales e de Anaxímenes (e cumpre confessar que há outros fatos relatados a respeito dos mesmos, incluindo especulações sobre a natureza dos corpos celestiais, a terra e certos fenômenos naturais), o leitor pode indagar o que os torna especificamente filosóficos. No caso de Anaximandro, o sucessor imediato de Tales de Mileto, há talvez mais matéria de estudo. O que impressionou Aristóteles e outros sobre Anaximandro foi que ele recusou a identificar a matéria básica, subjacente, com qualquer um dos quatro elementos tradicionais – terra, fogo, ar e água -, preferindo invocar o que chamou de apeiron (infinito, ou ilimitado) nesse particular. Fez isso presumivelmente sobre o fundamento de que era impossível gerar esses elementos de qualquer um de seus membros. Autores que comentam as opiniões de Anaximandro, porém, falam dos céus e dos mundos como tendo se originado do apeíron, dizendo que é a fonte do devir para as coisas e que elas não são destruídas ao voltar à origem. A palavra sugere menos uma matéria que poderia ser transmutada em outras, como parece acontecer com aquela a que se referia Anaxímenes, do que um reservatório de ser, de um tipo indeterminado, do qual o estado das coisas, em qualquer dado tempo, passa a existir e mais tarde volta a origem. Além do mais, Simplício, nossa principal fonte neste particular, continua citando o que em geral se considera como o único fragmento remanescente de Anaximandro – “segundo a necessidade, porquanto impõem pena e tiram vingança um do outro por suas injustiças, segundo a avaliação do tempo”.
Sobre o que isto significa podemos, talvez, dar apenas um palpite. Podemos supor, no entanto, que impressionava Anaximandro a inevitabilidade das mudanças que ocorrem no mundo – frio/quente, verão/inverno, juventude/velhice -, mudanças estas que podem ser representadas, como o eram pelos gregos em geral, como mudanças de um estado para seu oposto. Anaximandro quer extrair sentido desta inevitabilidade e sugere que a interpretemos segundo o modelo da justiça humana. No verão por exemplo , o mundo é denominado pelo calor; mas isto é uma espécie de usurpação, pela qual uma penalidade deve ser cumprida. A penalidade- o domínio pelo frio – implica outro ato de injustiça, mais uma penalidade , e assim por diante. Subjacente a isto há algo como a moderna idéia de lei natural, mas interpretada em termos morais/políticos. Se nesse ponto de vista há assombro com o estado de coisas, há também perplexidade. Se pessoas expressam essa confusão, perguntando por que deve ser sempre assim, Anaximandro responde: “Encare a situação assim (...)”. Parece haver algo autenticamente filosófico nessa concepção , mesmo que seja difícil definir com clareza o por quê é filosófico, e mesmo que, de outro ponto de vista, mais científico, a versão de Anaximandro possa parecer antropomórfica e mesmo grosseira. Há,contudo, outros aspectos em seu pensamento – sobre cosmologia, sobre o mundo e sobre animais – que o mostram como pensador abstrato e engenhoso. Abstração e engenhosidade não equivalem a ser filosófico, mas o fato é que as questões que pareceram interessá-lo, implícita se não explicitamente, eram de um caráter que diferiu das demais em seu tempo e não é de todo irrazoável sugerir que aqui nasceu a Filosofia.

Texto extraído do livro “Uma história da Filosofia Ocidental” – HAMLYN D. W. – Tradução: Ruy Jungmann – Ed. Jorge Zahar Editor/ Rio de Janeiro.