AULA - 3 O lugar do Ser Humano no mundo

07/04/2010 16:39

 Quando se pede para localizar a origem histórica da filosofia ocidental, a resposta unânime aponta para uma região do mapa da Europa, enquanto se afirma que num determinado período da antiguidade, nesse território específico, alguns habitantes de então passaram a levantar questões sobre tudo que os cercava. Tais perguntas exigiam uma explicação que não podia ser plenamente satisfeita por argumentos religiosos ou míticos. Os homens que faziam esse tipo de questionamento, perceberam que as respostas tradicionalmente dadas, amiúde, enfrentavam dificuldades de comprovação, diante das limitações da condição humana e do desenrolar dos acontecimentos.

Os deuses, que deviam constituir a imagem da perfeição, já não garantiam a felicidade das cidades que deveriam proteger, assolados que eram por guerras, epidemias e ameaças naturais constantes - terremotos, erupções vulcânicas etc. Tanto a religião, como as histórias dos antepassados caíam em descrédito. Se alguma resposta houvesse para tanta perplexidade, elas não deveriam ser buscadas fora deste mundo, ou num passado mítico, mas sim dentro do próprio ser humano, naquilo que ele tivesse de mais característico. A capacidade de raciocínio, destacada dos outros animais, começava a se impor e a elaborar argumentos que exigissem uma investigação mais atenta do mundo por parte dos pensadores. O objetivo, depois desse espanto inicial, era produzir teorias que desvelassem os mistérios que havia em tudo e encarar o mundo tal como ele é.

A nova postura adotada pelos pensadores helênicos propunha o esforço de apresentação de hipóteses que fossem adequadas à compreensão do lugar do ser humano e sua ação no mundo. Um mundo que sobre muitos aspectos lhe era estranho e desafiador. As questões que surgiam, desde aquela época originária, demandavam um conhecimento mais preciso sobre aquilo que é, ou seja, a existência dos seres, sua relação com os outros entes e consigo mesmo. Surgia, assim, o que, segundo o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), se chama filosofia, ou metafísica, propriamente dita. Por metafísica, entende-se o estudo do ser enquanto ser e as implicações acarretadas por uma progressiva abstração dos conceitos em relação à matéria de um mundo físico.

 Metafísica

 Para saber o lugar do ser humano no mundo, a pesquisa filosófica teve de ir além das observações dos fatos. A direção tomada conduzia ao próprio ser que subjaz a tudo e o modo como este ser se apresenta no mundo, perante os homens. Isso necessariamente levou a indagações de como seria possível o conhecimento do mundo através de um entendimento humano, por vezes tão superficial. Sempre ficava a dúvida se aquele conhecimento obtido pelo pesquisador poderia ser válido objetivamente, isto é, independente do próprio observador, ou se todo conhecimento seria limitado à condição finita da razão humana.

Essas dúvidas exigiam que, em certo sentido, a investigação se voltasse para aquele que investiga. O próprio inquiridor teria de ser alvo de exame, pois a visão mais apurada e precisa dependia da capacidade dele distinguir suas afecções das informações apresentadas pelos entes. Assim, para saber seu lugar no mundo, foi preciso que o ser humano passasse a se conhecer em primeiro lugar. O ponto de partida da investigação deveria estar na condição humana. A metafísica caminha, portanto, nesse paulatino afastamento dos fenômenos naturais, nos temas filosóficos. É pondo o mundo em suspensão - entre parênteses como se costuma dizer na matemática - que o filósofo poderá pretender, a partir de si mesmo, descobrir a verdade.

Metafísica é o nome que foi dado a uma das mais famosas obras do filósofo macedônio, da cidade de Estagira, Aristóteles (384-322 a. C.). Nela, procura-se compreender o "ser", as maneiras pelas quais esta palavra pode ser entendida, e as causas primeiras de tudo que existe ou acontece. Para o fundador do Liceu, a filosofia mostraria que o conhecimento teórico participaria da natureza da sabedoria e por ela se conheceria os princípios e causas, tendo por objetivo a verdade(2). Existiria um primeiro princípio - associado ao motor imóvel, ou Deus (livro XII da Metafísica) - e as quatro causas das coisas: 1. Material; 2. Formal; 3. Motor; 4. Final."Causa" [material] significa (1) aquilo que, como material imanente, provém o ser de uma coisa; p.ex., o bronze é a causa da estátua e a prata, da taça, e do mesmo modo todas as classes que incluem estas. (2) A forma ou modelo, isto é, a definição da essência, e as classes que incluem esta (...); bem como as partes incluídas na definição. (3) {Motor}Aquilo de que origina a mutação ou a quietação; p.ex., o conselheiro é causa da ação e o pai causa do filho; e, de modo geral, o autor é causa da coisa realizada e o agente modificador, causa da alteração. (4){Final} O fim, isto é, aquilo que a existência de uma coisa tem em mira; p.ex., a saúde é causa do passeio (ARISTÓTELES, Metafísica, V, 2, 1013a, 24-33).

Princípios e causas estão relacionados com as três substâncias: duas físicas (matéria e forma) e uma imóvel. Enquanto a matéria e a forma estão sujeitas à mudança e o movimento, a substância imóvel existiria independente das outras, mas que seria capaz de movê-las sem se mover. O primeiro princípio ou ser primeiro não é suscetível de ser movido, quer em si mesmo, quer acidentalmente, mas diga-se antes que é ele que produz o movimento primeiro, movimento eterno e único. Ora, o que é movido o é necessariamente por alguma coisa; por outro lado, o primeiro motor deve ser imóvel em si mesmo; o movimento eterno deve ser produzido por algo eterno, e o movimento simples por algo simples; (...) cada um destes últimos movimentos deve também ser causado por uma substância imóvel em si mesma e eterna (...) (ARISTÓTELES. Op. Cit., XII, 8, 1073a, 24-35).

Curiosamente, o batismo dessa obra deu-se apenas por motivos bibliográficos e não filosóficos. Atribui-se a Andrônico, editor do período helenista dos textos aristotélicos, o fato de ter reunido os diversos tratados que compõem a Metafísica e catalogado-os na posição imediatamente seguinte aos estudos de física. Logo, metafísica se referia simplesmente àqueles estudos que vinham depois da Física aristotélica - em grego, a expressão meta ta phisika quer dizer "depois da física". Essa história é interessante, porque de um acontecimento casual, o emprego da palavra metafísica terminou por gerar um tipo de investigação que, em geral, visava o afastamento dos temas da natureza material. Um caso exemplar de como a palavra pode gerar a coisa.

Por conta desse esforço especulativo, na busca das verdadeiras causas dos seres e do mundo, da essência de tudo, a metafísica passou a ser considerada como a forma de conhecimento mais digno de chamar-se sabedoria. Contudo, não se deve pensar que Aristóteles tenha sido o primeiro a tratar desse assunto. A tentativa de alcançar o princípio de tudo, partindo do conhecimento particular, para o mais geral, é uma característica do pensamento helênico, desde Tales de Mileto (c. 625-558 a. C.). Platão, em diálogos como Teeteto, Crátilo e Sofista, tentou encontrar argumentos que fundamentasse um conhecimento sólido sobre o mundo, contra a concepção relativista dos sofistas. Mas é com Heráclito de Éfeso (c. 540-470 a. C.), considerado um pensador obscuro, que o tema do conhecimento humano atinge o ponto mais profundo. Heráclito propunha uma concepção de saber radicalmente centrado na condição humana e nem por isso relativa a um determinado sujeito. Em seus fragmentos, pode-se perceber a tentativa de aproximar a capacidade humana de compreensão ao conhecimento que está em tudo. Por vezes, essa tentativa é frustrada pela superficialidade do tratamento dado pelo homem a essas questões, por outra, só uma profunda reflexão sobre o próprio conhecimento humano seria capaz de alcançar a devida sabedoria que estaria escondida em tudo(3).

Duas linhas de investigação podem ser traçadas, a grosso modo, a partir do que foi dito sobre Heráclito e Aristóteles. Enquanto o primeiro sugeria a compreensão do princípio ordenador que há no mundo, desde a profundidade do conhecimento no próprio homem, entendido como aquele que, fazendo parte do mundo, também é atravessado pelo princípio ordenador - logos, na concepção de Heráclito. Aristóteles, na sua Metafísica, ao iniciar a busca pelo conhecimento particular, empreende uma abstração gradativa até chegar a um princípio motor imóvel, fora do ser humano. Tal princípio motor, foi interpretado pelos filósofos cristãos - por exemplo, Sto. Tomás de Aquino (1227-1274) - como Deus. Ou seja, duas tendências metafísicas podem ser distinguidas, aqui, uma, a vertente heraclítica, onde o homem pode encontrar em si mesmo a essência do ser, e outra, a aristotélica, que permite fundar uma teologia, como o conhecimento mais alto dos princípios que regem tudo, a partir da reflexão filosófica.

 Repercussões modernas e contemporâneas

 A tendência de fundar o conhecimento humano, ora em si mesmo, ora numa entidade superior - Deus -, pode ser reconhecida em filósofos modernos da magnitude do francês René Descartes (1596-1650) e o prussiano oriental Immanuel Kant (1724-1804). Descartes, em suas Meditações, tenta provar a existência de Deus como fonte mantenedora e garantidora da verdade de todo conhecimento humano. Kant, por seu turno, ao invés de valer-se da hipótese divina, procura mostrar que o próprio homem, como participante dos mundos inteligível e sensível, poderia perceber por intermédio da razão pura os limites de seu conhecimento e, conseqüentemente, a incapacidade de conhecer a coisa em si, mas apenas os fenômenos sensíveis. Kant propunha uma crítica da razão pura que determinasse os limites do conhecimento e, destarte, inaugurou uma nova metafísica em torno de um suposto mundo inteligível, acessível à parte racional do ser humano.

Todavia, é no início do século XX que as influências da metafísica helênica são mais marcantes, sobretudo, na obra de Heidegger. Contra a corrente aristotélica que busca um princípio para o ser fora do próprio ser, Heidegger estabelece uma concepção de metafísica tão radical quanto a de Heráclito. Nesse sentido, ele propõe em Introdução à Metafísica, uma recuperação do sentido originário do ser, esquecido ao longo da história ocidental. Heidegger, assim, visa encontrar, nos moldes dos pensadores helênicos, as causas pelas quais o sentido do ser fora originalmente ocultado(4).

A questão fundamental da metafísica, no sentido heideggeriano, é saber "porque há simplesmente o ente e não o Nada?"(5). A resposta passa necessariamente pelo entendimento do ser como algo que vem a ser, isto é, aquilo que se apresenta no tempo como realização. A inspiração para essa concepção peculiar de ser, decorre da interpretação dada, por Heidegger, à palavra grega physis. Para ele, physis -comumente traduzida por natureza - deveria ser "entendida, como sair e brotar," aquilo que pode ser experimentado em toda parte(6). Através da physis o "ente se torna e permanece observável"(7). O significado de ser, nesse contexto, não surge de uma casualidade, mas de uma presença constante. A aparente confusão que a investigação ontológica emerge por causa do esquecimento do ser e de uma postura niilista perante essa complexidade, o que acaba gerando uma essência no Nada.

Por conseguinte, para a metafísica poder responder à questão "porque há simplesmente o ente e não antes o Nada?", Heidegger vai expor e fundar o Ser na origem grega, que diferenciava o ente do pensar. Época em que o logos, como em Heráclito, guiava o pensamento para consideração do Ser. A perspectiva originária dessa discussão revelaria a conseqüente separação entre Ser e Pensar, Percepção e Ser que passou a acompanhar a história da filosofia, desde então. O retorno à visão originária, para Heidegger, revelaria a própria determinação do ser do homem. À questão sobre a Essencialização do Ser se abotoa e vincula à questão sobre quem é o homem. A determinação da essencialização do homem, que aqui carece, não é, entretanto, tarefa de uma antropologia flutuante no ar, que, no fundo, se representa o homem, como Zoologia se representa o animal. Em sua perspectiva e em seu alcance a questão sobre o ser do homem é determinada exclusivamente pela questão do Ser. (HEIDEGGER, M. Ibdem, p. 226).

Crítica semelhante à antropologia, como estudo do homem, foi lançada pelo francês Michel Foucault (1926-1984), em As Palavras e as Coisas, obra marcada pela influência de Heidegger. No entanto, Foucault praticava um método "arqueológico", muito pessoal - diferente da ontologia heideggeriana - pelo qual tratava de fazer um corte histórico transversal à linha do tempo, a fim de expor as camadas sob as quais a concepção de homem foi estratificada. A interessante abordagem foucaultiana apontava para o século XIX, como o período no qual a reflexão tentou fundar a possibilidade de saber filosófico positivo. Isto é, a formação de um sistema teórico, onde determinados critérios moldavam o campo específico de conhecimento. Nesse momento, o homem surge como objeto e sujeito de saber. O saber assume o poder de transformar o ser humano como objeto de estudo entre outros na natureza, decretando a finitude do ser sob a ótica de um conhecimento positivo que deixa de lado a tentativa de busca das verdades primitivas. Nesse contexto, a antropologia, como possibilidade de saber empírico sobre o homem, é refutada em favor de uma ontologia purificada ou um pensamento radical do ser: livre de preconceitos antropológicos e capaz de questionar os limites do pensamento, renovando o projeto de uma crítica geral da razão que se indaga se o verdadeiro ser humano existe, afinal(8).

Seja neste século, no passado ou na antiguidade, o tema do verdadeiro lugar do ser humano no mundo ainda está por ser satisfeito. A despeito de um retorno às origens tentar elucidar essa questão, pode-se dizer que a metafísica surja toda vez que o ser humano passe a refletir, de modo crítico, sobre sua condição perante um mundo que o espanta, ameaça e desafia à lançar novas respostas. Uma tarefa que faz parte da própria constituição daquilo que se chama filosofia.

 Bibliografia

 ARISTÓTELES. Metafísica; trad. Leonel Vallandro. - Porto Alegre: Globo, 1969.

DESCARTES, R. Meditações; trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. - São Paulo: Abril Cultural, 1983.

FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas; trad. Antônio R. Rosa. - São Paulo: Martins Fonte, 1967.

___________, _. Les Mots et les Choses. - Mayenne: Gallimard, 1989.

HEIDEGGER, M. Introdução à Metafísica; trad. Emmanuel C. Leão. - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.

HERÁCLITO DE ÉFESO. "Fragmentos", in Os Pré-Socráticos; trad. José C. de Souza e outros. - São Paulo: Abril Cultural, 1978.

KANT, I. Crítica da Razão Pura; trad. Valério Rohden e Udo B. Moosburger. - São Paulo: Abril Cultural, 1980.

Notas

1. HEIDEGGER, M. Introdução à Metafísica; p. 43 e ss.

2. Veja ARISTÓTELES. Metafísica, I, 1, 981b-982a.

3. Veja HERÁCLITO DE ÉFESO. "Fragmentos", in Os pré-socráticos, pp. 79-91.

4. HEIDEGGER, M. Op. Cit., p. 45.

5. HEIDEGGER, M. Idem, p. 33.

6. HEIDEGGER, M. Ibdem, p. 44.

7. HEIDEGGER, M. Ibdem, p. 45.

FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas, p. 353 (ed. francesa).