AULA 9 - 0 FILÓSOFO E A COMUNIDADE

13/04/2010 17:23

 

Uma anedota conta que, numa noite estrelada, Tales de Mileto (624-546 a.C.) caminhava atento, observando os astros, quando, de repente, antes que pudesse perceber, cai num fosso. Uma mulher que presenciara o tombo do primeiro filósofo, impiedosamente, teria dito: "como sabes o que se passa nos céus se não tens a capacidade de ver o que está debaixo de seus pés". Humilhado por essa situação constrangedora, nos dias que se seguiram, Tales com o conhecimento adquirido por suas observações astronômicas, alugara todos os bosques de oliveiras disponíveis, antes que a boa safra de azeitona, que ele previra, ocorresse. Quando a colheita veio, os consumidores de azeite tiveram de aceitar o preço exigido por ele. Tales ficou rico e pôde provar a sua crítica mordaz que o conhecimento, por mais distante que pareça do cotidiano, pode ter algum efeito prático material(1).

Por vezes, o senso comum tende a atacar a filosofia como um saber inútil ou inexistente. Esse tipo de objeção, entretanto, carece de fundamento histórico. A busca pelo conhecimento, característico da filosofia, tem trazido conseqüências inevitáveis para o modo como as pessoas agem no seu dia-a-dia. Pois, é com base no que sabe que as pessoas sensatas procuram agir, na expectativa de obterem os melhores resultados possíveis para suas ações.

Desde o seu início - tendo em vista a pequena história transmitida por Diógenes Laércio sobre Tales, que aqui foi adaptada -, a cobrança pela aplicação do conhecimento filosófico já existia. Por conta disso, os filósofos tiveram de tomar, de um modo ou de outro, uma posição diante dessas reivindicações sociais. Tales previu o eclipse solar de 28 de maio de 585 a.C. e isso levou os lídios e os medos, que estavam em guerra, a cessarem os combates e procurarem fazer as pazes(2). Os sofistas achavam que poderiam ensinar, pela retórica, a técnica de produzir discursos contra e a favor de qualquer tema, com o objetivo de convencer o ouvinte(3). Platão sofreu na pele a experiência desastrosa que teve com o tirano de Siracusa, uma cidade na Magna Grécia (localizada na Sicília), enquanto tentava aplicar sua teoria do rei-filósofo(4). Não se sabe até que ponto, os êxitos de Alexandre, o magno decorreram dos ensinamentos de Aristóteles, seu preceptor.

Na era moderna, matemática e filosofia estiveram juntas na formulação do sistema newtoniano, principal representante da física clássica. O valor absoluto dado à ciência e à tecnologia constituiu o cerne da corrente filosófica positivista. As revoluções inglesas, norte-americana e francesa foram inspiradas por idéias de filósofos como Thomas Hobbes, John Locke; Benjamim Franklin e Jean–Jacques Rousseau, entre outros que se colocaram de uma maneira ou de outra sobre os conflitos em suas respectivas eras. A Revolução Russa de 1927 seguiu as diretrizes de Karl Marx e foi implementada por intelectuais como Lênin. A lógica e a psicologia cognitiva estão influindo no avanço da computação. Em todos os âmbitos da vida, para o bem ou para o mal, a filosofia está presente. Desde a rotina diária, às crenças mais profundas, o comportamento humano é moldado por um pensar arraigado na sociedade e no indivíduo.

Filosofia na Comunidade

Talvez seja inútil tentar definir se a filosofia influencia a sociedade, ou se esta gera a sua própria filosofia. O fato é que o ser humano tem uma necessidade de refletir sobre sua própria condição e, refletindo, modificar ou justificar sua conduta. De acordo com o grau de refinamento da interpretação de sua situação no mundo, cada indivíduo estabelece uma postura que irá interagir com outras, sob a moldura de uma teoria social. Tal teoria pode vir a esclarecer o fenômeno social e filosófico, observando o modo pelo qual a humanidade gera suas próprias leis e concebe as leis naturais(5)

Por algum mecanismo, ainda não totalmente compreendido, os seres humanos tendem a criar histórias e explicações sobre si mesmo e o meio que o cerca. Os resultados dessa produção intelectual vão desde os modelos explicativos, típicos do senso comum, passando pelas narrativas míticas, indo em direção a uma aspiração religiosa, até chegar a uma teoria completa de cunho filosófico ou científico, capaz de oferecer razões satisfatórias, ao menos momentaneamente, às inquietações da mente humana. Algumas vezes, tais teorias subjetivas, criadas por cada indivíduo, pretendem atingir um conhecimento objetivo, que seja reconhecido como válido por todos os semelhantes. Para tanto, é necessária a sua divulgação perante os outros e, nesse sentido, surge um novo contexto, no qual as explicações do sujeito têm de atender exigências gerais, formuladas por terceiros.

Tais exigências constituem o ambiente da comunicação que permite a troca de informação entre os membros de uma comunidade. Assim, torna-se indispensável que a linguagem assuma um papel central na interação social. O intercâmbio dos argumentos e contra-argumentos, pró ou contra uma determinada interpretação, faz com que cada um reflita sobre suas proposições de um ponto de vista que vai além do meramente subjetivo, indo ao encontro de uma justificação que considere a perspectiva do outro. Quanto maior for o número de participantes, nesse debate de idéias, maior a tendência de se encontrar uma teoria geral, moldada pelo próprio contexto comunicativo pertinente a cada grupo.

Eis como a filosofia encontra na comunidade o elemento fundamental para sua interação social. Seja qual for o teor filosófico de cada teoria - metafísica, ética, ciências, política ou estética -, em algum momento a filosofia terá de sair do âmbito do indivíduo, autor de seus enunciados - no caso o próprio filósofo -, no intuito de encontrar a expressão adequada para uma formulação mais ampla, que somente o debate intersubjetivo pode proporcionar com suas demandas explicativas. Todavia, aqui, ainda cabe uma melhor explicação sobre a maneira pela qual tais teorias são fomentadas por uma sociedade, através de perspectivas particulares.

De fato, embora sejam as teorias iniciadas pela reflexão particular de cada sujeito pensante, uma vez que tal indivíduo só pode pretender formular com clareza tais teorias, depois de ter passado por um longo processo de socialização qualquer, fica difícil delimitar exatamente a fronteira que separa o ponto de vista singular do autor, das influências da comunidade. Por certo, as teorias nascem em meio a uma tradição. Porém, muitas delas aparecem como oposição à própria tradição geradora. Por mais que se tenha de admitir que as diversas teorias filosóficas sejam frutos de um contexto social, a criação individual traz novos elementos que amiúde se distanciam da opinião generalizada.

Devido a isso, duas posições podem ser confrontadas. Uma, a comunitariana, que diz ser toda teoria produzida numa comunidade e restrita a seu contexto histórico(6). Outra, universalista, que sustenta a possibilidade do discurso teórico se afastar do ambiente no qual foi criado, assumindo uma condição geral, capaz de ser válida para toda e qualquer sociedade(7). Dependendo da vertente a qual se filie, essas duas posições levam seu defensores a tomarem posição quanto a questões de cunho ético e científico.

Se for adotada uma postura comunitariana radical, a tendência é de se implantar o relativismo tanto em relação ao conhecimento, como também nas leis da política, já que a racionalidade e a própria noção de justiça estariam irremediavelmente atreladas a uma perspectiva da comunidade. Do outro modo, o universalista, seria possível imaginar que o indivíduo teria a habilidade para se afastar das influências do grupo em que se insere e encontrar o conhecimento absoluto - tanto científico, como o moral - válido para todos, independente do meio em quer vivem, mesmo se ressalvando o falibilismo da razão.

Para superar o impasse provocado pelo confronto dessas duas posições divergentes - aqui caracterizadas de modo extremado, até mesmo superficial, a fim de ressaltar suas diferenças - , torna–se necessário examinar como é possível ao ser humano estabelecer suas teorias e narrativas de uma maneira filosófica. Mesmo que essa explicação possa cair num círculo vicioso, é preciso estar atento para o fato de que, caso haja uma solução, esta depende da maneira pela qual se compreende o ser humano. Não será possível, por enquanto, esgotar essa compreensão, porém, vale a pena esboçar uma trajetória passível de ser seguida por quem queira se afastar dos dois extremos apontados.

Ora, já foi mencionado que o contexto interativo da comunicação é produzido pela própria comunidade, como um instrumento que permite aos seus membros ajustar suas teorias, segundo os questionamentos de terceiros. Por outro lado, a mente humana, isso a pesquisa neurológica vem mostrando, é tão complexa que não há possibilidade, a não ser muito remota, de dois indivíduos terem a mesma configuração do sistema nervoso. Em conseqüência disso, a visão singular de cada um difere da d'outro, necessariamente. Logo, seres capazes de elaborar um raciocínio que possa ser expresso por meio da linguagem, sempre construirão teorias variantes entre si sobre o mesmo objeto.

Assim, por maior que seja a influência que a comunidade pode exercer sobre os indivíduos que a compõem, estes terão a possibilidade de elaborarem interpretações divergentes umas das outras, e, por vezes, opostas aos conceitos geralmente aceitos pela comunidade. Entretanto, dado que é na ação comunicativa que as pretensões de validade dessas teorias particulares são satisfeitas, pela concordância de todos, cabe conceber uma teoria discursiva que solucione a disputa entre comunitarianos e universalistas. Basta para isso, que se aceite como corretas as proposições de que os indivíduos estão aptos, nas condições de normalidade fisiológica, de produzirem teorias sobre a sociedade e a natureza, que vão além do ambiente em que vivem e, por causa disso, para atenderem as exigências de objetividade, precisam do contexto comunicativo, inerente à própria sociedade a fim de validarem suas pretensões.

Destarte, filosofia e comunidade se complementam de forma produtiva, proporcionando ao filósofo um papel social relevante toda vez em que suas teorias são expostas à comunidade, seja ela acadêmica ou não. Sempre que houver um debate em torno das idéias propostas, alguma interferência ocorrerá. Entrementes, a publicidade, entendida como o domínio público para divulgação de idéias, e a comunicação são fatores fundamentais para que a filosofia e a sociedade influenciem uma a outra.

Essa explicação breve sobre uma alternativa às posições comunitarianas e universalistas se apóia no conhecimento neurológico do funcionamento da mente humana. Contudo, se a diversidade de postura de cada indivíduo for também gerada pelo ambiente social é provável que a argumentação alternativa venha responder a esse afastamento da sociedade por fatores da própria sociedade, o que exigirá uma petição de princípio, sobre qual fator seria capaz de proporcionar ao ser humano o distanciamento indispensável para garantir sua liberdade de expressão. Não obstante, se a diversidade de opiniões for uma condição natural alheia aos fatores sociais, sendo parte da estrutura inata de cada um, a circularidade estará quebrada e o argumento poderá prosseguir para uma melhor formulação, mais apurada. Por enquanto, basta indicar a plausibilidade de uma posição que não caia no relativismo social, nem num idealismo da liberdade individual, como se pode detectar nas vertentes comunitárias e universalistas.

Bibliografia

APEL, K-O. "Como Fundamentar uma Ética Universalista de Corresponsabilidade que tenha efeito sobre as Ações e Atitudes Coletivas?", in Ethica, ano III, n° 4; trad. Anna Mª M. Rodrigues. - Rio de Janeiro: UGF, 1996.

CHANGEUX, J-P. O Homem Neuronal; trad. Artur J. P. Monteiro. - Lisboa: Dom Quixote, 1991.

DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas, Opiniones y Sentencias de los Filósofos Más Ilustres; trad. Jose O. Y Sanz. - Buenos Aires: El Ateneo, 1947.

HABERMAS, J. Consciência Moral e Agir Comunicativo; trad. Guido A. De Almeida. - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HERÓDOTO. História; trad. J. Brito Broca. - Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1964.

PLATÃO. "Cartas", in Diálogos, vol. V; trad. Carlos A. Nunes. - Belém: UFPa, 1975.

________. "Protágoras", in Diálogos, vol. III; trad. Carlos A. Nunes. - Belém: UFPa, 1975.

MACINTYRE, A. Justiça de Quem? Qual Racionalidade?; trad. Marcelo P. Marques. - São Paulo: Loyola, 1991.

SANDEL, M. Liberalism and Limits of Justice. - Cambridge: CUP, 1982.

Notas

1. A história narrada aqui foi extraída, com algumas modificações, de DIOGENES LAERCIO. Vidas, Opiniones y Sentencias de los Filósofos Más Ilustres; p. 31-35.

2. Veja HERÓDOTO. História, liv. I, § 74.

3. Veja PLATÃO. Protágoras.

4. Veja PLATÃO. Carta VII.

5. É preciso que se diga que leis naturais, no sentido adotado aqui, dizem respeito àqueles enunciados gerais que os seres humanos atribuem aos acontecimentos da natureza, independente de haver ou não uma relação direta entre causa e efeito, entendida como lei.

6. São exemplos dessa tendência MACINTYRE, A. Justiça de Quem? Qual Racionalidade? (1988) e SANDEL, M.Liberalism and Limits of Justice (1982).

7. São universalistas HABERMAS, J. Consciência Moral e Agir Comunicativo (1983) e APEL, K-O. "Como Fundamentar uma Ética Universalista de Corresponsabilidade que Tenha Efeito sobre as Ações e Atividades Coletivas?" (1992).