AULA 10 - O PAPEL DO FILÓSOFO

13/04/2010 17:26

 

Em todos os ramos do conhecimento a presença do filósofo pode ser sentida. Seja defendendo, seja criticando, os filósofos procuram marcar suas posições diante de toda atividade humana que envolva a reflexão. Sempre na esperança de poder encontrar algum critério ou princípio que justifique uma tomada de decisão ou uma argumentação qualquer. Da religião às artes, buscou-se, muitas vezes em vão, fornecer algum esclarecimento sobre a melhor maneira de se posicionar a respeito dos assuntos mais interessantes do ponto de vista humano.

Freqüentemente, tinha-se a impressão de que um conhecimento da verdadeira atitude a ser adotada já havia sido estabelecido. Porém, no instante posterior, outro filósofo rebatia essa postulação, argumentando que um entendimento geral de tudo não seria possível e que somente uma compreensão parcial poderia ser obtida. Por causa dessas idas e vindas, o papel do filósofo na sociedade variou bastante. Ora ele vestia a toga de juiz imparcial e neutro que, de posse de uma razão absoluta, poderia determinar o princípio pelo qual todos deveriam se orientar. Ora afastava-se do convívio dos outros, uma vez que em nada poderia influir para solução dos conflitos argumentativos, sendo obrigado a suspender seu juízo sobre o mundo.

A falta de uma função específica para a filosofia, devido ao fato dela procurar discutir todos os temas relativos ao entendimento humano, tornou-a uma disciplina de difícil aceitação quanto a sua participação social. Eventualmente, a finalidade da filosofia é algo que apenas os filósofos poderiam opinar. Entretanto, dadas as exigências de justificação de todos os princípios, a solução filosófica para definir a melhor concepção de filosofia está paradoxalmente enredada numa explicação circular que os próprios filósofos rejeitam. Talvez a única alternativa para a quebra desse círculo seja deixar para a própria sociedade a definição do papel a ser exercido pelos filósofos. Contudo, como a sociedade é composta por indivíduos, apenas por meio destes é que as posições coletivas podem ser expressas (depois de um consenso, mais ou menos, estabelecido entre os pares). Ao refletir sobre a melhor utilização de uma determinada atividade, cada um estará exercendo uma investigação tipicamente filosófica de busca por um conhecimento geral para um fenômeno particular.

Logo, o posicionamento filosófico está cercado por diversas dificuldades que, provavelmente, como todo o resto, não possui uma resposta definitiva. Mas ainda assim, cabe discutir as conseqüências que posturas diferentes, em relação a esse tema, podem acarretar. Três tendências muito fortes podem ser destacadas. A primeira diz que a filosofia faz parte de uma tradição de pesquisa historicamente arraigada numa comunidade. A segunda propõe que, por causa dos equívocos de uma conduta influenciada por valores tradicionais - preconceitos, fanatismo e passividade -, a melhor atitude para o filósofo seria encontrar uma posição fora do contexto histórico, a fim de julgar com moderação as justificativas e práticas de cada um. Por fim, há aqueles que não acreditam na capacidade da filosofia fornecer qualquer juízo válido para ação humana, em geral, - seja reflexiva ou prática - e, por causa disso, todo suposto "saber" filosófico teria uma condição nula quanto ao aspecto social e serviria somente para a constituição de cada um, isoladamente, como uma necessidade poética de auto-realização inerente ao homem, mas sem resultados políticos ou epistêmicos imediatos.

O Papel de Cada Filosofia

Em cada cabeça, uma sentença. Em cada filósofo, uma teoria. Evidente que as três perspectivas, aqui destacadas, são simples aproximações com as quais alguns traços podem ser detectados em correntes filosóficas como as comunitariana, liberal e entre os nietzschianos de várias espécies - Heidegger, Foucault e Gilles Deleuze. Não obstante, essas simplificações permitem que se abra uma discussão capaz de revelar as variantes passíveis de serem adotadas por cada um, segundo suas próprias convicções e história.

A posição comunitariana, que defende a influência do fator social na elaboração de um teoria, por parte do indivíduo, apesar de aparentar certa plausibilidade pode cair em equívocos de sobrevalorização do papel da tradição. Fora do contexto de uma tradição dominante, é possível encontrar atitudes de afirmação da pessoa diante dos valores partilhados por uma determinada comunidade. Nem por isso, essa independência do indivíduo, em relação à história, deve ser algo a ser considerado como característica exclusiva de uma tradição liberal, uma vez que reações do sujeito podem emergir do ambiente social sem que essa postura esteja de acordo com as propostas universalistas do liberalismo.

Uma alternativa individualista que não é tipicamente liberal pode ser apontada naqueles pensadores que, depois de Friedrich Nietzsche (1844-1900), procuraram mostrar que a construção do sujeito pode ir além da comunidade a qual este sujeito está inserido, graças a uma afirmação da vontade de cada um em se superar constantemente. Michel Foucault, a partir de Microfísica do Poder (1979), passou a defender a possibilidade do indivíduo elaborar estratégias de auto-afirmação que permitiriam a construção de um sujeito livre da dominação de um pensamento generalizado socialmente que tentasse o anular. Nesse sentido, aqueles que abraçam as idéias nietzschianas adotam uma posição de defesa do indivíduo que não é necessariamente liberal, já que a difusão universal do liberalismo tenderia a subjugar o sujeito numa forma de pensamento único. Para os adeptos de uma vontade de poder se superar, indo além das condições locais nas quais o homem vive, a neutralização do indivíduo perante os outros e o afastamento de seus interesses, em favor de um interesse geral - universalizável - é algo também a ser refutado, a fim de que a vontade de cada um prevaleça sobre qualquer generalização. A grosso modo, essa tendência defende uma concepção heróica de indivíduo radicalmente centrada na vontade do sujeito afirmar-se perante os outros(1).

Por sua vez, os liberais formam outra concepção de sujeito, diferente da nietzschiana, que não está ligada meramente a uma tradição, no sentido de estar preso a certas práticas compartilhadas por uma comunidade específica. Os comunitarianos, entretanto, têm razão em apontar um plano de ação próprio do liberalismo que sugere um tipo de vida típico de uma tradição. Todavia, não se pode dizer que haja um fim último ao qual as práticas liberais estejam comprometidas, posto que cabe a cada um determinar o fim que deseja buscar para realização de seu projeto de vida. A falta de um objetivo específico, torna a tradição liberal contrária a qualquer imposição da comunidade na definição de uma boa vida válida para todos os indivíduos. De fato, os liberais estão preocupados com os procedimentos formais a serem adotados para realização de um projeto qualquer e não na determinação do fim que deva ser buscado em detrimento de outro(2).

Por estar preocupado tão somente com os procedimentos que venham a garantir a liberdade do indivíduo poder decidir qual a melhor maneira de agir para obter o fim desejado, é que o liberalismo não pode ser simplesmente considerado uma tradição entre outras. Pois, o filósofo liberal volta-se apenas para o exame do modo pelo qual a razão encontra a maneira mais adequada de agir ou reconhecer a verdade de um enunciado, sem se preocupar, a princípio, com o resultado que tal conhecimento poderá gerar. Contudo, para evitar a produção de conseqüências indesejáveis, quando a escolha do fim possa contradizer o próprio liberalismo, será preciso que a norma a ser adotada pelos indivíduos na deliberação tenha o reconhecimento universal, isto é, que seja válida para todos os demais, sem contradições.

O papel do filósofo, nestas circunstâncias, seria o de guardar a posição de um determinado tipo de prática refletida, na qual cada um poderia defender uma proposição que pudesse atender as exigências de todos os seres racionais, saindo do plano individual e particular para um plano geral e universal. O filósofo, então, deveria ser aquele que permitisse a abertura de um espaço de discussão das diversas concepções e, através da razão, garantir que procedimentos neutros proporcionem a troca de argumentos e contra-argumentos, a fim de que a correção da proposta em questão fosse aceita por todos os participantes do debate, sem uso da força.

Assim, a posição do filósofo perante a sociedade e sua função mudam de acordo com o tipo de relação adotada pelas diversas correntes filosóficas. Enquanto, os comunitarianos carregam para a filosofia a responsabilidade de afirmar uma determinada tradição e de manter práticas respectivas a cada uma delas, os nietzschianos procuram, ao contrário, centrar no sujeito toda vontade de sua própria realização, devendo o filósofo encontrar as estratégias que permitam a cada um se constituir, segundo sua característica "sobre-humana". Já os filósofos liberais sugerem a instituição de um fórum propício para o esclarecimento dos juízos e, em conseqüência disso, formular princípios universais que todos poderiam assumir da perspectiva neutra do debate filosófico, livre das influências, por vezes coercitivas do meio social.

Nenhuma dessas atribuições está livre de dificuldades quanto ao desempenho de um papel social por parte do filósofo. Por ser membro de uma comunidade ou tradição, os problemas de tradução entre posições diferentes podem gerar distorções e má compreensão entre os integrantes de grupos rivais, quando práticas divergentes entram em conflito. A tendência é que cada tradição procure se preservar diante das inovações do contato com outras tradições, naquilo que cada uma considere necessário manter para sua sobrevivência. Nesse aspecto, o filósofo nada poderá resolver, fora do domínio da tradição que se vincule.

Aqueles que defendem a constituição de um indivíduo totalmente oposto a práticas normativas de uma sociedade, voltado exclusivamente para sua auto-realização, concebem um sujeito em tensão permanente com o meio social. Isso pode levar a um isolamento que contradiz a tendência "natural" dos seres humanos buscarem a cooperação no intuito de executar um projeto qualquer. Mesmo para sua própria constituição, uma pessoa depende de outra. Caso contrário, o esforço de cada um em realizar seus objetivos poderá levar a disputas que acabam por tornar cada vez mais difícil o seu alcance. O filósofo, como um indivíduo que também buscará seu próprio fim, em nada terá a dizer sobre como os outros deverão se comportar para tanto.

Por fim, nem um espaço público neutro, direcionado apenas para solução de disputas em torno de normas ou proposições, pode superar a dificuldade da razão em encontrar princípios gerais, com os quais todos os participantes e interessados na discussão pudessem dar seu assentimento. O filósofo, em nome da imparcialidade, não poderia intervir impondo uma diretriz a todos. No máximo, ele poderia orientar o debate, a fim de impedir que a coerção pudesse ser mobilizada para a validação da proposta problematizada.

Outros papéis poderiam ser sugeridos para o filósofo, mas nenhum estaria isento de esbarrar nos problemas aqui esboçados a respeito do envolvimento efetivo com uma filosofia em particular, não problematizada, e na sua aplicação, sem qualquer obstáculo, no seio de uma sociedade. Claro que, uma vez tomada a postura filosófica, este posicionamento, por si só, já envolverá certos pressupostos que não poderão ser plenamente esclarecidos. E essa falta de definição entre o filósofo e sua doutrina, isto é, o desconhecimento dos motivos últimos que levam alguém a assumir uma teoria qualquer, será transposta na prática social filosófica, trazendo de volta todos os problemas acerca da melhor atitude a ser adotada.

Bibliografia

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder; trad. Roberto Machado. - Rio de Janeiro: Graal, 1979.

HABERMAS, J. O Discurso Filosófico da Modernidade; trad. de Ana Mª Bernardo e outros. - Lisboa: D. Quixote, 1990.

____________, _. Consciência Moral e Agir Comunicativo; trad. Guido A. De Almeida. - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

MACINTYRE, A. Justiça de Quem? Qual Racionalidade?; trad. Marcelo P. Marques. - São Paulo: Loyola, 1991.

NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal; trad. Márcio Pugliesi. - Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

SANDEL, M. Liberalism and Limits of Justice. - Cambridge: CUP, 1982.

RAWLS, J. "Justiça como Eqüidade: Uma concepção política, não metafísica", in Revista Lua Nova n° 25; trad. Regis de C. Andrade. - São Paulo: Lua Nova, 1992.

_______,_. Uma Teoria da Justiça; trad. Carlos P. Correia. - Lisboa: Presença, 1993.

Notas

1. NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal e FOUCAULT, M. Microfísica do Poder.

2. Veja HABERMAS, J. Discurso Filosófico da Modernidade (1984) e Consciência Moral e Agir Comunicativo (1983) e RAWLS, J. Teoria da Justiça (1971) e "Justiça como Eqüidade: Uma concepção política e não metafísica".