AULA 4 - A AÇÃO HUMANA NO MUNDO

13/04/2010 16:51

 

A despeito das objeções de Heidegger quanto à consideração do agir humano como uma consumação do ser, a falta de um fundamento metafísico seguro não impediu que diversos autores, ao longo da história da filosofia, tratassem de encontrar a maneira mais adequada de se comportar entre os seres humanos e perante os objetos da natureza. Certamente, a lacuna gerada pelo abandono de uma explicação originária, em relação ao ser, levou a todos que estudaram o comportamento humano a se enquadrarem na tradição filosófica ocidental que, na perspectiva heideggeriana, separava o ser do pensar e do agir. Filósofos - como Aristóteles, Kant e mesmo aqueles que trabalham sob a ótica de uma tradição religiosa ou histórica -, freqüentemente, recorrem a princípios de ação ideais, fora do domínio material e natural dos agentes humanos, a fim de estabelecerem uma base firme para a criação de normas.

Costuma-se dizer que a prática humana correta e válida, seria aquela que estivesse de acordo com uma concepção de vida; de um mundo superior ou uma tradição histórica já formada. Sendo assim, os diversos pensadores que abordaram esse assunto, quase sempre, recorriam a uma situação ideal imaginada que serviria para se averiguar se uma determinada ação ou regra de ação é válida ou não, correta ou ilegítima etc. Portanto, para saber se o ser humano age corretamente, bastaria confrontar sua ação com uma norma considerada válida ou compará-la com outra ação semelhante desenvolvida num contexto ideal. Isto é, verifica-se se a ação é adequada à uma lei ou se ela poderia ser aceita por um modelo padrão que universalizasse sua aplicação, inscrevendo a ação num princípio geral válido para todos.

Nesse sentido, as doutrinas que apelam para essas construções idealizantes pretendem avaliar a prática conforme parâmetros de universalização, ou seja, segundo uma prática que todos pudessem exercer toda vez que as condições necessárias se reproduzissem. Ou ainda, que a prática estivesse de acordo com um tipo de vida considerada boa e a mais adequada para os seres humanos em geral. Por exemplo, matar uma outra pessoa seria uma ação considerada incorreta, pois acarretaria na extinção da espécie caso todos pudessem exercer essa ação, sem restrições. Por outro lado, matar seria mau, porque não seria pertinente a uma concepção de vida humana boa, na qual todos fossem considerados iguais.

Todavia, nem sempre os casos apresentados ao juízo se acomodam numa norma ou padrão ideais pré-estabelecidos. Casos de legítima defesa, aborto ou eutanásia são exemplos de como uma norma do tipo "não matar" pode ser problematizada e se abrir às exceções. Por conta disso, existem correntes filosóficas que admitem uma concepção de ética que não esteja vinculada a conceitos ideais absolutos, como critério de verificação das ações. O que se pretende é que cada ação seja avaliada isoladamente pelos interesses dos envolvidos, pelas conseqüentes utilidade ou geração de prazer ou sofrimento. Além disso, há aqueles que defendem uma posição pragmática diante das diversas opções oferecidas ao agir, quer dizer, uma atitude seria considerada boa se não houvesse outra alternativa melhor do que a praticada. Claro que, nessa tendência, todo um processo de deliberação deveria ser examinado de acordo com as circunstâncias que envolvem a ação.

 As Diversas Éticas

O termo "ética" tem origem na palavra grega éthos, geralmente traduzida por habitação, morada ou costume. Moralis é a tradução dada pelos romanos a éthos que originou a palavra moral. Na origem, então moral e ética querem dizer a mesma coisa. Isso, no entanto, não proibiu que diversas interpretações fossem prestadas ao conceito de conduta humana. Entre as várias correntes existentes, podem ser citadas as principais: A teleológica, que afirma haver um fim (télos) pelo qual a ação moral é orientada, cujos principais representantes são Aristóteles e Charles Taylor;

A universalista, que defende a existência de um princípio geral, válido para todos, Kant e Jürgen Habermas;

A contratualista, que propõe que os princípios de ação sejam validados por um contrato entre as partes interessadas, tendo em Thomas Hobbes (1588-1679) e David Gauthier seus maiores defensores;

A utilitarista, que funda numa utilidade geral e nos sentimentos morais a boa conduta humana, como Jeremy Bentham (1748-1832) e Peter Singer;

E o pragmatismo, que avalia as ações segundo o processo de deliberação e um modo de vida circunstanciado, veja John Dewey (1859-1952) e Richard Rorty.

Cada uma dessas principais correntes possui variações e subdivisões que geram novas teorias morais, como a comunitariana - derivada da teleológica -, a ética do discurso, baseada na universalista; a ética da compaixão, fundada no utilitarismo; entre outras doutrinas mistas, como a teologia da libertação, justiça como eqüidade, o direito positivo etc.

Monismo e Dualismo

Aristóteles foi o primeiro a escrever uma obra exclusivamente dedicada a questões éticas. A ele, são atribuídos quatro tratados sobre o assunto: Ética a Eudemo, Ética a Nicômaco, Magna Moralia e o duvidoso Tratado de Virtudes e Vícios. De todos esses textos, o mais completo é a Ética a Nicômaco. Os demais, ou estão incluídos neste, ou são um resumo de suas principais idéias. Composto por dez livros, a Ética a Nicômaco parte de uma concepção de bem como fim de todas as coisas. O conhecimento desse bem seria manifesto pela ação política. A investigação ética, segundo Aristóteles, tenta mostrar o bem relativo à ciência política, a saber: a felicidade (eudaimonia). Para tanto, seria necessário que os cidadãos fossem educados nos bons hábitos e capazes de agir por meio de um princípio racional e não por paixões.

Tendo em mente que a honra era a finalidade da vida política e sua busca se daria por causa da virtude, Aristóteles supôs ser esta a razão pela qual os homens vivem em sociedade. Depois de uma extensa análise das virtudes, o filósofo estagirita conclui que o homem virtuoso encontra o prazer em seus próprios atos. Supondo ainda que a vida contemplativa de um filósofo seria a mais prazerosa de todas - por permitir a contemplação da verdade -, a ética aristotélica propõe que a conduta humana, numa comunidade, seja conduzida por leis que promovam a realização desse bem supremo que é a felicidade de poder contemplar a verdade e possuir a sabedoria(1).

Embora a Ética a Nicômaco aponte para um tipo de vida considerado ideal, o próprio Aristóteles não apelava, nesta obra, para nenhum expediente que desse a entender um dualismo que separasse as ações humanas, em sua prática cotidiana, da concepção de vida sugerida. De fato, para a vida contemplativa realizar-se era preciso a sua execução numa organização política exercida por homens de carne e osso, neste mundo. Sob esse aspecto, pode-se dizer que a teoria ética aristotélica se mantinha dentro de uma perspectiva monista, concebida e aplicada a uma única noção de mundo.

Em ética, por outro lado, o dualismo é uma característica que só vem a ser nitidamente traçada por Immanuel Kant, a partir de sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Antes dele, também é possível atribuir um dualismo ético a Platão, mas este não deixou nenhum diálogo do qual se pudesse extrair um sistema formal de ética. Toda noção da ética platônica é retirada de diversas passagens espalhadas na República, Leis, nas Cartas (sobretudo a Carta VII), Apologia de Sócrates, entre outros.

Na Fundamentação, Kant criticou o conceito de felicidade, entendido como um bem que fosse o fim da filosofia moral. A felicidade, como ele entendia, era a soma de todas as inclinações humanas. Cada um teria a sua noção de felicidade e ninguém estaria de acordo sobre qual seria o bem supremo. Para Kant, o conteúdo da ação moral estaria na prática por dever e não por inclinação. Isso porque o dever conteria a boa vontade, um tipo de querer com valor absoluto, independente de qualquer outra influência. O dever caracteriza, na ética kantiana, a necessidade de uma ação por respeito à lei moral - uma lei universal das ações que manda agir de acordo com a máxima que a vontade quer que se torne uma lei válida para todos. Em outras palavras, cada indivíduo, portador de uma boa vontade, saberia escolher, dentre suas regras particulares, aquela que pudesse valer para todos os demais.

A idéia do imperativo categórico surge em função dessa concepção de lei moral. O imperativo categórico, diferente de outros imperativos, não dependeria da matéria da ação, nem de seu objetivo (fim). Esse imperativo visa encontrar a lei que valha necessariamente, sem qualquer condição e de um modo objetivo e geral. Por causa dessas características, meramente formais, o imperativo categórico poderia propor leis a priori, ou seja, independente da experiência cotidiana e particular. A razão prática teria, nesse imperativo, o instrumento para obtenção de um princípio universal de validação da lei moral. A formulação definitiva dada por Kant a esse imperativo é: age de tal maneira que a humanidade em qualquer pessoa seja usada como fim e nunca como meio (KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, seç. II, B 66/7).

A humanidade surge aqui como aquela comunidade que seria formada por seres racionais, participantes de um mundo inteligível. O homem seria o único ser capaz de participar desse mundo inteligível e também de um mundo sensível. Por conseguinte, ao se tornar membro do mundo inteligível, como ser racional, o homem tomaria parte de um "reino dos fins", onde cada um teria valor por si mesmo, graças à faculdade da razão que possui. Logo, todas as regras de um ser racional valeriam para outro ser racional e por extensão a todos os que pertencessem a esse reino.

Kant termina sua Fundamentação, dizendo que ao tomar parte desse mundo inteligível, a vontade humana estaria em liberdade, isto é, livre de todas as influências do mundo sensível. Destarte, a vontade poderia determinar as máximas do indivíduo racional que poderiam valer para todos os outros que também fariam parte do "reino dos fins", ou mundo inteligível, que agiriam de boa vontade, segundo a lei moral.

O dualismo na ética kantiana é evidente. Há um mundo inteligível e outro sensível aos quais o homem seria membro. Do primeiro, por ser racional. Do segundo, por ser um animal sujeito às influências materiais, numa palavra: inclinações. A existência de um mundo inteligível e de uma razão prática é que garantiria a formulação de leis morais válidas para todos seres racionais. Ora, caso questione-se a capacidade do ser humano de propor regras livres de qualquer inclinação sensível, os kantianos não têm como demonstrar que a suposta liberdade da vontade seja possível de ser implementada. Além disso, não há como assegurar que as ações pertinentes ao mundo sensível - o único real, de fato - possam ser regidas de fora, por normas alheias às particularidades e circunstâncias de cada pessoa, seja ela racional ou não. A resposta para uma ação no mundo inteligível, imaginário, Kant tem. Porém, as ações no mundo sensível escapam aos seres racionais por não corresponderem às ações num "reino dos fins". As ações do mundo real sofrem influências das inclinações, sentimentos, crenças, desejos e dos recursos materiais disponíveis para sua execução. Uma lei moral, que não leve em conta esses fatores decisivos, tende a se tornar inaplicável e estéril.

Aplicação da ética

A solução dualista kantiana, portanto, embora seja admirável, não resolve os problemas concretos da ação humana. Por outro lado, o monismo aristotélico, que propõe um tipo de vida com o qual nem todos seriam capazes de realizar, também não ajuda muito. Para encontrar a melhor forma de agir, num mundo cheio de complexidades, a ética tem que se voltar efetivamente para a prática humana cotidiana, tal como faz o filósofo australiano Peter Singer, autor de Ética Prática (1993).

Por ética prática, Singer entende a aplicação da teoria ética no tratamento de questões da ordem do dia-a-dia, como a discriminação racial, sexual, os direitos dos animais, a preservação da natureza, aborto, eutanásia e a redistribuição de renda. Mesmo sem conhecer em detalhes as especificações técnicas de cada assunto, caberia ao filósofo dizer algo de útil a respeito desses assuntos. Ainda mais quando houver concepções éticas divergentes. O papel do filósofo, então, será o de colocar as diferentes posições às claras, a fim de que se possa tomar uma decisão refletida sobre o conflito moral. Apesar de tais esclarecimentos não implicarem necessariamente numa iniciativa moral por parte do agente, o compromisso pela ação moral resultará da exposição precisa das posições em conflito e das conseqüências que cada uma delas acarretam. A adoção do ponto de vista ético depende, segundo Singer, de uma compreensão de que conflitos de interesses serão solucionados de uma maneira ou de outra. Seja pela ação ou omissão, algo moralmente relevante acontecerá(2).

Singer sugere que qualquer que seja a decisão adotada, ela deverá levar em conta os interesses de todos seres sencientes - que sentem dor - envolvidos, proporcionando maior prazer e diminuição do sofrimento. Sob esse aspecto, a ética prática proposta por ele assume uma tendência utilitarista que procura maximizar a utilidade geral de uma ação em função de um todo. Útil será tudo aquilo que minimize a dor e aumente o prazer. Sem recorrer a uma construção de mundo ou vida ideais, Singer constrói uma teoria ética a partir de casos particulares, onde problemas éticos surgem da falta de um padrão que possa prever todas variáveis: escassez de recursos, a constituição física da pessoa moral e a preocupação com o impacto ambiental do comércio internacional, além do cuidado para com as gerações futuras e o uso dos animais como cobaias e fonte de alimentos. Fatos que, afinal, devem ser levados a sério por filósofos que lidem com a prática humana.

Bibliografia

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. - São Paulo: Abril Cultural, 1973.

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes; trad. Paulo Quintela. - São Paulo: Abril Cultural, 1980.

MACINTYRE, A. Justiça de Quem? Qual Racionalidade?; trad. Marcelo P. Marques. - São Paulo: Loyola, 1991.

SINGER, P. Ética Prática; trad. Jefferson L. Camargo. - São Paulo: Martins Fontes, 1993.

TUGENDHAT, E. Lições sobre Ética; trad. Aloísio Ruedell e outros. - Petrópolis: Vozes, 1996.

Notas

1. Veja ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, livro X, cap. 8, 1178a-1179a.

Veja SINGER, P. Ética Prática, capítulos 1 e 12.