AULA 8 - A REFORMA DA NATUREZA

13/04/2010 17:17

 

A Terra levou cerca de 3 bilhões de anos para criar as condições necessárias para que a vida em sua superfície pudesse se desenvolver a ponto de gerar a enorme diversidade que habita o planeta atualmente. Em seu livro Diversidade da Vida (1992), o biólogo Edward O. Wilson afirma que um quinto das 100 milhões de espécies que se supõe existir, no presente, poderiam desaparecer ou entrar em processo de extinção por causa da interferência humana, destruindo florestas, poluindo e introduzindo espécies exóticas em meio ambientes frágeis(1). Ao lado disso, a biologia vem desenvolvendo um projeto que tem por finalidade mapear todo código genético humano, até 2010. Por trás dessas duas atitudes, pode-se diagnosticar a mesma pretensão: que a ciência e a tecnologia tenham o pleno controle da natureza, sendo capaz de moldá-la, segundo os conhecimentos adquiridos nas pesquisas sobre os mecanismos naturais mais secretos.

A idéia é ambiciosa, pois estima-se que com os produtos derivados das futuras descobertas, advindas do Projeto Genoma, se poderá arrecadar cerca de 60 bilhões de dólares na venda de medicamentos. Enquanto se espera os inúmeros benefícios que o conhecimento genético pode fornecer, surgem questões éticas inevitáveis quanto a possibilidade de manipulação dos genes humanos, a fim de selecionar artificialmente as características mais desejáveis para as próximas gerações - um retorno mal disfarçado da famigerada eugenia grega. Também aparecem problemas em torno do aborto seletivo, que evitaria o nascimento das crianças com genes considerados prejudiciais; da provável discriminação de pessoas cujo exame do genoma acusasse algum defeito congênito; a criação de "superhomens", entre outras polêmicas, já trazem preocupações aos cientistas e políticos envolvidos na liberação de verbas destinadas a tais pesquisas(2).

Tem-se também a impressão de que tamanha destruição provocada na natureza pelos seres humanos poderia ser compensada por esse conhecimento biológico. O que permitiria a sobrevivência da humanidade num mundo totalmente transformado, de acordo com as características mais adequadas à civilização. Tudo que a humanidade precisasse seria produzido em laboratório, a partir de elementos químicos: seja medicamentos ou alimentos. As cidades urbanizariam todos os ambientes, climatizando-os ao gosto temperado da espécie, como se o planeta pudesse se tornar um imenso centro-comercial, com condicionador de ar central.

Um Conhecimento Perigoso

Entretanto, por mais que se avance no conhecimento genético, a postura reducionista que marca todo progresso científico, desde o século XIX, encontra novos obstáculos que não estavam previstos. Apesar da biologia ter dado um salto cognitivo importante com a descoberta do ADN (ácido desoxirribonucleico), em 1953, pouco se sabe ainda sobre a maior parte das espécies existentes no planeta. Das 100 milhões estimadas, apenas 1,4 milhão foram catalogadas. Destas, menos de 10 % foram satisfatoriamente estudadas. Não se sabe ao certo qual a influência e importância de tão grande número de biodiversidade para manutenção da vida, em um modo geral(3).

A tendência de se encarar a própria espécie humana como algo que não fizesse parte da natureza, ou que não tivesse evoluído junto com essa diversidade, é que tem gerado essa ação degradadora de todos ecossistemas que sofreram a intervenção humana. O esquecimento da importância do meio ambiente selvagem tem posto em risco não apenas a diversidade da vida, mas também a própria existência do homem na face da terra, seja física ou espiritualmente - dado o grande número de doenças psíquicas desenvolvidas pelo progresso da urbanização. O conhecimento do genoma humano servirá para facilitar a prevenção de doenças congênitas, mas as influências externas do meio ambiente sobre o gene permanecerão imponderáveis, diante das conseqüências inesperadas que a diminuição da biodiversidade poderá acarretar.

Qualquer forma de discriminação entre os genes, do tipo "bom" ou "mau", não passará de um preconceito que não condiz como o real motivo da existência daquele gene específico. Dos três bilhões de pares de base que compõem o genoma humano, 90% não apresentam nenhuma função conhecida, o restante contém instruções para fabricação de proteínas, sendo que apenas 1,1% difere do ADN do chimpanzé(4). Tudo indica que mesmo na biologia, a função do gene não é suficiente para sustentar uma descrição completa da natureza e do homem, apenas de posições tão simplistas quanto a reducionista e determinista das ciências em geral. Pois os genes estão em constante interação com um meio ambiente também mutável.

Nesse contexto, ainda que a seleção natural proposta por Charles Darwin (1809-1882) seja o agente principal das modificações, nada garante que a "persistência do mais apto" represente o avanço de todas as qualidades corporais e intelectuais do indivíduo em direção à perfeição(5). Pouco mais de um centésimo separa geneticamente a espécie humana dos símios. Isso revela o quanto é insuficiente o conhecimento das características genéticas para definição precisa da essência humana. As perturbações do meio ambiente parecem exercer um papel de extrema importância na formação das espécies, ainda que impeça um delineamento exato de seu desenvolvimento. Logo, uma interpretação determinista, também nesse campo, está afastada.

O Alcance da Sociobiologia

Embora Edward O. Wilson seja um dos biólogos que mais defendem uma ética ambientalista, que procure argumentar em favor da biodiversidade, ele é também um dos mais polêmicos criadores da disciplina sociobiologia, que visa reduzir a economia, sociologia e psicologia à interpretação proposta pela biologia evolucionária(6). De fato, a teoria da seleção natural teve êxito na descrição de como as características fisiológicas dos homens e animais surgiram. E mesmo na concepção da estrutura genética que está por detrás dessas marcas fundamentais. O comportamento animal pode ser bem explicado desde a perspectiva evolucionista. Todavia, no que diz respeito às ações humanas, ainda há muita lacuna explicativa a ser preenchida.

Por mais que os genes possam ser identificados a certas atitudes - agressividade, altruísmo, egoísmo ou timidez - a interação das instruções genéticas com o meio ambiente modifica o comportamento que, por ventura, estivesse pré-estabelecido no genoma humano. Além disso, podem ocorrer mutações no contato com outros elementos da natureza, ou pela duplicação errada do ADN. Como diz Jon Elster, em Peças e Engrenagens das Ciências Sociais (1989), "não sabemos quais os limites impostos pelas instituições sociais para manifestação das predisposições genéticas da 'natureza humana'"(7). Sobre esse aspecto, a sociobiologia vem desprezando a capacidade humana de enfrentar as adversidades e a sua inventividade. As intenções relacionadas com qualquer agente racional não podem ser assunto de um biologia social, pois está não tem como encontrar, na base do genoma, as motivações intencionais dos indivíduos, oriundas de fonte externa. Motivações essas que são fruto de vários fatores causais do meio ambiente no qual os seres humanos estão envolvidos.

Para fornecer uma explicação completa do comportamento dos homens, a teoria evolucionária tem de tratar de um ecossistema em constante transformação e da reação dos organismos a essas mudanças. Os genes, em meio a tudo isso, tendem a adaptar-se da melhor maneira. Somente quando essas alterações são lentas, é que se torna possível uma previsão mais aproximada do que ocorreu ou está por ocorrer. Mas em sociedades muito complexas, essa explicação só pode ser feita apoiada em estatísticas e probabilidades de ocorrência. Em geral, nem mecanismos subjetivos, nem mecanismos objetivos garantem que as pessoas façam o que está em seu interesse fazer. A escolha racional é com freqüência indeterminada e não garante comportamento ótimo, mesmo supondo que as pessoas se livraram de sua tendência a comportar-se irracionalmente. Os processos de seleção são muito lentos na produção de comportamento que esteja otimamente adaptado a um ambiente em rápida mudança (ELSTER, J. Op. Cit., idem, p. 101/102).

Mesmo nos casos em que as mudanças genéticas não dependem de uma atitude afirmativa e racional do agente - quando a própria evolução cuida da adaptação da espécie - a genética chega a impasses contraditórios. Os casos das anemias congênitas são exemplos dessa imponderabilidade da adequação dos genes ao meio. Entre as populações que habitam regiões onde há incidência de malária, foram desenvolvidos três tipos de defesas cujos efeitos colaterais são a anemia falciforme, a talassemia e a deficiência da proteína G6PD (glicose 6 fosfato desidrogenase). A anemia falciforme decorre de uma alteração na hemoglobina - uma proteína encontrada nos glóbulos vermelhos responsável pelo transporte do oxigênio e gás carbônico no organismo - que é prematuramente destruída, provocando anemia num primeiro estágio e interrompendo, em seguida, o suprimento de sangue dos vasos capilares, devido à pouca flexibilidade das células sanguíneas deformadas. A talassemia, por sua vez, provoca a escassez das cadeias alfa e beta do ADN, que têm a função de produzirem hemoglobina, e, em conseqüência dessa deficiência, a anemia. Por fim, a carência da proteína G6PD, embora não resulte numa doença crônica, provoca uma hipersensibilidade aos remédios antimalária, deixando o paciente com anemia profunda, ao utilizar esses medicamentos.

Essas doenças ameaçam cerca de 342 milhões de pessoas em todo mundo, das quais 100 milhões têm deficiência de G6PD e o restante portam um cópia do gene da talessemia ou da anemia falciforme(8) . No entanto, elas surgiram como uma maneira do organismo criar barreiras à procriação do parasita da malária (protozoários do gênero plasmodium) no interior de glóbulos vermelhos que tenham tanto a hemoglobina normal, quanto a modificada. As crianças só são atingidas pela anemia falciforme quando recebem uma cópia do gene para a hemoglobina anormal tanto do pai quanto da mãe. Nos portadores de uma única cópia do gene, os glóbulos vermelhos fabricam ambos os tipos da hemoglobina, só um número muito pequeno de células se deteriora e a doença não se manifesta. Quando essa mutação apareceu na história evolutiva humana, praticamente todo gene defeituoso tendia a ter como parceiro uma cópia do gene intacto, e assim ela conferia proteção contra a malária e deixava os portadores com boa saúde (WILKIE, T. Op. cit., cap. 6, p. 121).

Hoje, contudo, com a proliferação do gene alterado ocorrendo na mesma proporção em que subia a taxa de natalidade e sobrevivência das pessoas afetadas, as chances de uma criança receber duas cópias desse gene dos pais são de 25%. Porcentagem idêntica a dos que não obtêm nenhuma cópia e estão sujeitos às seqüelas da malária. Isso mostra o quanto a evolução biológica pode levar a resultados paradoxais em relação à adaptação de um indivíduo ao seu meio. A capacidade de um organismo reagir às agressões externas pode salvá-lo ou destruí-lo, pois as possibilidades de morte por malária das pessoas sem a proteção genética é a mesma de quem herdou a mutação de seus pais.

Diante de todos esses problemas, que uma simples teoria biológica da evolução não é capaz de superar - seja na explicação do desenvolvimento social, ou das mutações provocadas pela interação com o meio -, há espaço para o surgimento de uma ética ambientalista que vise a formulação de normas para restrição da destruição da biodiversidade, da discriminação genética e do incremento da eugenia. Nesse sentido, autores como Jon Elster, Peter Singer, Tom Wilkie e o próprio Edward O. Wilson concordam que o avanço das ciências biológica não implica no domínio completo da natureza e das sociedades humanas(9).

Bibliografia

CHANGEUX, J-P. O Homem Neuronal; trad. Artur J.P. Monteiro. - 2ª ed - Lisboa: Dom Quixote, 1991.

DARWIN, Ch. A Origem das Espécies; trad. Eduardo Fonseca. - Rio de Janeiro: Ediouro, 1987.

ELSTER, J. Peças e Engrenagens das Ciências Sociais; trad. Antônio Trânsito.- Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

SINGER, P. Ética Prática; trad. Jefferson L. Camargo. - São Paulo: Martins Fontes, 1993.

WILKIE, T. Projeto Genoma Humano; trad. Mª Luiza X. de A. Borges. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

WILSON, E. O. Sociobiology. - Cambridge: Harvard University Press, 1975.

________, _. Diversidade da Vida; trad. Carlos A. Malferrari. - São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Notas

1. Veja WILSON, E. O. "A Ética Ambiental", in Diversidade da Vida, p. 371.

2. Veja WILKIE, T. Projeto Genoma Humano, p. 11/26.

3. Veja WILSON, E. O. Op. Cit., idem, p. 373 e ss.

4. Veja CHANGEUX, J-P. O Homem Neuronal, cap. VIII, p. 256.

5. Veja DARWIN, Ch. A Origem das Espécies, cap. 15, p. 368/374.

6. A favor dessa tese ele escreveu os livros Sociobiology (1975) e Consciliência (1999).

7. ELSTER, J. Peças e Engrenagens das Ciências Sociais, cap. VIII, p. 99.

8. WILKIE, T. Op. Cit., cap. 6, p. 120.

9. Para as diversas abordagens da ética ambiental veja SINGER, P. "O Meio Ambiente", in Ética Prática, p. 279/304; WILKIE, T. "As Conseqüências Morais da Biologia Molecular", in Projeto Genoma Humano, p. 189/215 e WILSON, E. O. "A Ética Ambiental", in Diversidade da Vida, p. 368/377.