AULA 6 - A DEFESA DO SENSO COMUM

13/04/2010 17:07

 

Dificilmente, o brilhante esforço de Descartes de provar a existência da alma e de Deus seria capaz de converter um infiel ou um ateu. Por outro lado, a crítica cética também não pode servir de alternativa a um modo de vida. Ninguém conseguiria viver duvidando constantemente de tudo. Por conta disso, todos procuram, bem ou mal, seguir a maioria de suas crenças comuns sobre o mundo, por falta de um motivo mais forte para descartá-las, ainda que elas possam ser completamente falsas.

No final do século XX e do segundo milênio, apesar de todas tentativas, a filosofia e as ciências não encontraram um fundamento seguro que permitisse o abandono da maior parte das interpretações do senso comum. Todos jornais sustentam colunas de horóscopos; enquanto, no dia a dia, costuma-se dizer que o sol nascerá a leste e morrerá a oeste, como se a astronomia e a física não tivessem provado que a Terra gira em torno do Sol e a distante e fraca influência dos astros na tomada de decisão de uma pessoa.

Essa deficiência explicativa para sugerir um argumento definitivo e último, que provasse as coisas no mundo, gerou uma nova forma de abordagem dos temas filosóficos, menos dogmática e mais afeita ao falibilismo. Ou seja, já reconhece-se que a razão pode falhar, por diversos motivos, e que um certo pragmatismo ante estas questões é a melhor postura a ser adotada. O senso comum e seu modo de vida, baseado em crenças e desejos, permanecem inabaláveis, tal como na origem helênica da filosofia ocidental.

Dada a incapacidade da filosofia fornecer respostas definitivas que fechassem qualquer uma de suas questões, volta-se a discutir, hoje, os problemas cognitivos a partir de um ponto de vista mais aproximado das características intuitivas, intencionais e explicativas do senso comum. As crenças e desejos dos indivíduos passam a ser base do pensamento filosófico contemporâneo. O individualismo metodológico, então, passa a ser a principal marca das investigações feitas pelas ciências humanas, sem que para isso tenha de se perder uma atitude crítica e inquiridora.

Contribuiu para isso, um certo descrédito nas promessas da tendência positivista das ciências. Já não se pensa, hoje, como se pensava, no final do século passado, que o desenvolvimento das ciências e da investigação filosófica iria proporcionar maior progresso e bem-estar da maioria da população. As ações desastrosas cometidas em nome do desenvolvimento científico e da soberania da razão, ao longo deste século, foram suficientes para abalar essas pretensões.

A Filosofia do Senso Comum

Porém, antes disso tudo acontecer, o senso comum já encontrava um defensor contundente entre um daqueles filósofos que seguem a tradição analítica de abordar um tema filosófico, isto é, tendo como ponto de partida a compreensão precisa do significado das expressões da linguagem. Este filósofo foi o inglês George Edward Moore (1873-1958), que escreveu um ensaio intitulado Uma Defesa do Senso Comum (1925). Neste ensaio, ele sustenta que certos truísmos derivados do senso comum podem ser tidos como verdadeiros. Por exemplo, saber que um corpo humano presente e vivo é meu ou não; que em tempos diferentes, muitas diversas coisas aconteceram e que eu nasci num determinado tempo no passado, etc(1).

Para Moore, cada indivíduo, na maioria das vezes, sabe sobre si mesmo todas aquelas afirmações de sua história pessoal que ele afirma saber, no que diz respeito a seu pensamento e corpo. A confusão criada pelos filósofos em torno desse tipo de conhecimento dar-se-ia pelo fato deles tomarem essas questões do ponto de vista de uma terceira pessoa, fora daquele que afirma saber o que diz. Em outras palavras, outros seres humanos poderiam ter outros corpos sem que o sujeito soubesse que eram corpos humanos, já que da posição subjetiva não há como saber o que aconteceu no passado com outros seres humanos, além do próprio sujeito. Ora, da perspectiva externa, ninguém pode assegurar a verdade das proposições do senso comum. Só do ponto de vista interno e pessoal é que alguém pode dizer que sabe algumas sentenças triviais do senso comum, pertinentes ao seu próprio saber. O que Moore quer garantir é esse conhecimento mínimo de que cada um sabe que sabe a verdade das proposições do senso comum. (...) Falar com desprezo daquelas "crenças do senso comum" que mencionei é certamente o máximo dos absurdos. E há, obviamente, grande número de outras características na "visão do mundo do Senso Comum" que, se aquelas [crenças] são verdades, são certamente verdade também: por exemplo, que viveram sobre a superfície da terra não apenas seres humanos, mas também muitas espécies diferentes de plantas e de animais etc etc (MOORE, G. Op. Cit., in Escritos Filosóficos, p. 253).

Com isso, Moore quer dizer é que se uma pessoa sabe que uma proposição do senso comum é verdadeira, não há motivos para se duvidar que ela saiba, de fato, essa verdade. Isso não impede que outros acontecimentos venham a negar tal verdade. Entretanto, é preciso que alguma pessoa saiba que essa nova informação seja verdadeira, para que ela possa ser sustentada. O senso comum não precisa de mais nada, para provar a sua verdade, a não ser do conhecimento interno de alguém que sustenta uma dada afirmação como verdadeira. Além disso, uma vez posto esse conhecimento básico, a verdade do mundo exterior também poderia ser sustentada, do mesmo modo que as sentenças triviais, a partir da certeza de quem sabe.

Fora essa defesa de aspecto analítico, outras formas de encarar o comportamento humano tiveram de recorrer às expressões do senso comum, a fim de explicarem a ação do agente humano. Para se conhecer as verdadeiras causas do ato de um agente, seria preciso apelar, então, ao uso de termos como crenças e desejos que interagiriam na mente produzindo uma determinada conduta. O vocabulário de uma psicologia popular - para autores como Donald Davidson e Daniel Dennett, por exemplo - não poderia ser reduzido aos enunciados de uma ciência da natureza, como a física e a neurologia.

Os defensores da psicologia popular afirmam que a complexidade dos mecanismos de decisão para uma ação não permite que se abandone as crenças e desejos do senso comum, em favor de uma simples explicação fisiológica, sem levar em consideração as características intencionais de um evento mental. Se uma série de neurônios é afetada pela presença de determinado neuro-transmissor, esse fato por si só não explica porque uma pessoa prefere ir para o trabalho a pé, de ônibus, metrô ou táxi. As escolhas de um agente humano, entendida em termos de preferência, não se deixam reduzir a sua base física e material.

Embora nenhum evento na natureza possa ocorrer sem o suporte material, isso não quer dizer que a melhor interpretação desse evento deva se dar no âmbito das ciências naturais. Sobretudo quando se trata da ação humana, palavras como livre arbítrio, desejos, crenças e hábitos são indispensáveis para o entendimento adequado das causas que estão "por detrás" do ato. A representação da informação na mente e o processo de deliberação feitos pelos indivíduos precisam ainda da esfera da psicologia popular, típica do senso comum, para que uma explicação do fenômeno mental seja bem sucedida.

Nesse sentido, a intencionalidade está além da descrição neuro-fisiológica do comportamento humano. Apesar de não conseguir, ainda, propor leis sobre esse comportamento, a psicologia popular não pode ser dispensada e o senso comum tem aqui um papel a desempenhar.

 O Falibilismo e o Bom senso

 As ciências humanas têm como acréscimo a dificuldade de explicar as circunstâncias em que a razão falha, sem que isso seja causado por um distúrbio mecânico funcional do organismo. Se acaso alguém resolve seguir seus instintos, a despeito de todas as razões contrárias, o máximo que se pode dizer é que essa pessoa age de modo irracional. Mas não há uma lei natural que possa descrever com precisão quando a razão falhará ou não. Outros fatores como a falta de informações suficientes, desejos, influências diversas e observações distorcidas podem ter uma participação efetiva nas tomadas de decisão. Por vezes, a sorte deverá também ser considerada, sob a rubrica de uma margem de segurança das previsões.

Nesse contexto, é com a intuição que se conta. Alternativas contra-intuitivas, geralmente, tendem a ser desastrosas, mas mesmo assim isso não constitui uma regra. Dada a imponderabilidade dos fatores envolvidos num fenômeno qualquer, a razão deve apoiar-se em última instância no bom senso do senso comum, onde as chances de algo vir a ocorrer como o previsto se baseiam num hábito consolidado por sucessivas observações empíricas registradas pela tradição.

O reconhecimento das limitações da razão e uma postura crítica diante de normas dogmáticas podem ser a saída mais recomendável nos dias de hoje. A filosofia do senso comum deve, então, estar atenta a esses dois guias que só o amadurecimento da investigação empírica pode gerar. Já não cabe mais apelos a doutrinas idealizantes que tenham respostas para tudo, como também não se aceita mais o recurso a superstições e lendas fantasiosas. Entre o rigorismo das ciências do passado e a imprecisão do senso comum, a filosofia contemporânea encontra seu caminho. O senso comum deixa de ser, portanto, o "primo-pobre" que precisa de ajuda, mas se transforma numa fonte rica de informações brutas a serem trabalhadas por uma pesquisa criteriosa, todavia não conclusiva. O desdobramento dos eventos dos últimos cem anos serviu para reabilitar o conhecimento pré-filosófico da tradição, ao mesmo tempo em que refreou os impulsos fundamentalistas dos filósofos e cientistas reducionistas. Em nenhum campo do conhecimento humano, a filosofia conseguiu sozinha melhores resultados do que o senso comum. Os problemas éticos e cognitivos da civilização helênica permanecem sem solução até hoje. Não há uma conclusão sobre a melhor forma de agir ou validar uma ação. Assim como não se sabe com certeza como os eventos do mundo físico irão se comportar no futuro, graças à imponderabilidade gerada pelas complexas interações entre todos elementos na natureza.

A indeterminação na natureza, reconhecida pelas ciências naturais no início desse século foi outro fator a tornar o conhecimento cada vez mais relativo ao ponto de vista do observador. Estendida à filosofia, o indeterminismo alimenta o relativismo e outras tendências falibilistas, tais como o pragmatismo que se apóiam numa investigação do mundo desde a ótica assumida de um modo de vida estabelecido. Nesse caso, a melhor alternativa perante as circunstâncias é que deve ser considerada apropriada a uma ocasião, o que constitui um conhecimento provisório, mas plausível, tendo em vista todos elementos envolvidos.

Agora, livre dos preconceitos, a filosofia pode trabalhar com os dados do senso comum, a fim de encontrar os esclarecimentos críticos necessários que proporcionem ao homem contemporâneo tomadas de decisões adequadas e uma melhor compreensão da complexidade dos fatos do mundo. A despeito de tentativas reducionistas anacrônicas, a filosofia e o senso comum seguem lado a lado permitindo a abertura de novas linhas de pesquisa como a recente abordagem sobre o conhecimento humano sugerida pela teoria da mente - que discute o processo mental, a partir da perspectiva da psicologia popular e do desenvolvimento da ciência computacional - e pela teoria da justiça como imparcialidade - que tem em John Rawls seu principal defensor e pretende estabelecer princípios de política justos sem apelar para concepções metafísicas, utopias irrealizáveis e fundamentos últimos, supondo um equilíbrio reflexivo de uma sociedade já formada.

Junto ao senso comum, a filosofia contemporânea põe, finalmente, os pés no chão e começa a caminhar, tendo como objetivo atender as exigências explicativas de seres humanos de carne e osso, portadores de crenças, desejos, sofrimentos e histórias particulares.

 Bibliografia

DAVIDSON, D. Essays on Action and Events. - Oxford: Claredon Press, 1980.

ELSTER, J. Peças e Engrenagens das Ciências Sociais; trad. Antônio Trânsito. - Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

GARDNER, H. A Nova Ciência da Mente; trad. Cláudia M. Caon. - São Paulo: Edusp, 1995.

DENNETT, D. C. "Mechanism and Responsibility", in HONDERICH, T. (ed.). Essay on Freedom of Action. - Londres: Routledge & Kegan Paul, 1973.

MOORE, G. Escritos Filosóficos; trad. Paulo R. Mariconda. - São Paulo: Nova Cultural, 1989.

NAGEL, Th. Qué Significa Todo Esto?; trad. Alfonso Montelongo. - México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1987.

RAWLS, J. Uma Teoria da Justiça; trad. Carlos P. Correia. - Lisboa: Presença, 1993.

_______, _. "Justiça como Equidade", in Lua Nova, n° 25; trad. Regis de C. Andrade. - São Paulo: 1992.

SEARLE, J. Mente, Cérebro e Ciência; trad. Artur Morão. - Lisboa: Edições 70, 1987.

Notas

1. Veja MOORE, G. Uma Defesa do Senso Comum, in Escritos Filosóficos, p.243 e ss.