AULA 2 - LITERATURA E DISCURSO TEÓRICO

13/04/2010 16:43

 

Desde a antiguidade, o mito adquiriu o caráter, por vezes pejorativo, de uma narrativa fabulosa, ficcional ou mentirosa. Esse aspecto desfavorável não permitia mais que o mito fosse aceito como uma forma válida para abordar assuntos considerados superiores, tais como os religiosos e filosóficos. Entretanto, problemas em relação à falta de documentos históricos e argumentos definitivos não favoreciam uma fundamentação última desses assuntos. Em muitos casos foi preciso abandonar essa pretensão em favor de uma interpretação não literal dos fenômenos no mundo. Eventualmente, para evitar as dificuldades impostas pelas limitações racionais e materiais, teve-se de recorrer à alegorias ou metáforas que elucidassem essas questões.

As fracassadas tentativas do Cristianismo, por exemplo, de estabelecer a verdade dos evangelhos como fatos históricos levaram os primeiros exegetas cristãos - como Orígenes (séc. II) - a tentarem mostrar que o verdadeiro sentido da religião estava além da história, ou seja, encontrava-se em seu sentido espiritual. A partir desse novo enfoque, termos como "enigmas", "parábolas" e "dogmas", assumiram a mesma função que os rejeitados "mito", "ficção" e "mistérios".

Do lado filosófico, a construção de um discurso teórico verdadeiro não esteve - e ainda não está - livre de embaraços míticos. A teoria, sendo entendida enquanto um conjunto de sentenças que precisam ser plenamente satisfeitas, de acordo com o filósofo norte-americano Williard Quine, só pode ser considerada verdadeira de modo relativo. Isso porque, ao se especificar as sentenças que comporão a teoria, o teórico emprega palavras cuja escolha depende de uma teoria doméstica geral que não foi exposta. Por conseguinte, as sentenças da teoria seriam descritas por outra, a saber: aquela teoria doméstica cujos objetos também deveriam ser questionados. A construção de uma teoria consistente - com todas sentenças verdadeiras -, portanto, nunca pode ser executada em sua concepção absoluta, mas sempre relativa a outra teoria que não é posta à prova.

Existem alguns critérios para averiguar a validade de uma teoria. Primeiro, o da não-contradição: uma teoria não pode dizer de algo que esse algo seja verdadeiro e falso, ao mesmo tempo. Segundo, ela não pode cair num regresso ao infinito, recorrendo sempre a outras teorias sucessivamente. Terceiro, não deve cometer uma circularidade, isto é, suas conclusões não devem ser pressupostas por suas premissas. Tais requisitos já haviam sido exigidos pelos filósofos céticos, discípulos de Pirro (séc. III a. C.). O ceticismo pirrônico propunha a suspensão do juízo sob a alegação de que apesar de existirem critérios para demonstrações teóricas, não haveria nenhuma demonstração que pudesse satisfazer esses critérios.

Sem poder satisfazer tantas exigências de uma só vez, o discurso teórico, quando visa encontrar o fundamento último de um enunciado com pretensões de verdade, frequentemente tem de apelar para uma construção imaginária ideal que sustente suas posições.

A crítica ao mito, realizada por filósofos e religiosos, não significa, nas palavras de Mircea Eliade, que "esse pensamento tenha sido definitivamente abolido". Apesar de todo ataque sofrido, por esses dois flancos, os mitos helênicos resistiram, como obra literária, à crença religiosa e muitas teorias lançadas contra eles pelos pensadores e filósofos antigos. Nesse sentido, a escrita foi uma aliada importante para isso, pois os cultos religiosos se perderam no tempo, quando a oralidade da tradição abriu espaço à cristianização de suas práticas. Tudo que restou da religião helênica se deve ao fato dela ter sido mencionada em obras-primas literárias e artísticas. Quanto ao logos helênico, muito de seu significado foi perdido, durante as inevitáveis mudanças históricas, ocorridas através do tempo, apesar dos fragmentos e testemunhos grafados, pois seu conteúdo filosófico circunstanciado também foi esquecido.

Eis uma vantagem que o mito tem sobre outras formas de discurso: a narrativa mítica consegue manter uma certa perenidade, enquanto a religião e a filosofia perdem muito de sua força original, com o passar dos anos. A capacidade da narrativa mítica atender a diversas perspectivas pessoais sobre o mundo, permite que novas gerações possam reinterpretá-los sem que eles percam coesão. Por não admitirem mais de um significado em suas teses centrais, religiosos e filósofos fazem com que suas doutrinas sejam refratárias às transformações interpretativas, tornando-se logo obsoletas.

 Literatura

 A literatura, então, pôde absorver toda a herança da riqueza de significados do mito, sem restrições. Renegado pela religião e filosofia, os escritores literários não impuseram barreiras à narrativa mitológica. Pelo contrário, esses artistas perceberam que os mitos poderiam fornecer a matéria-prima que, depois de reelaborada, expressariam novos significados, o que outras formas de expressão proibiam.

Eliade, que sempre se dedicou à análise dos mitos, crê ser "possível dissecar a estrutura 'mítica' de certos romances modernos". Temas como herói-salvador, visões mitológicas da mulher, riquezas e ritos de iniciação, encontrados nos livros modernos revelariam o desejo por consumir o maior número possível de "histórias mitológicas". Para Eliade, "alguns aspectos e funções do pensamento mítico são constituintes do ser humano". Apesar do romance moderno ter um tempo próprio diferente de uma sociedade tradicional - que ouvia, mais do que lia o mito -, do mesmo modo que na narrativa mítica, o leitor atual é convidado a sair do seu tempo histórico e pessoal, mergulhando num "tempo fabuloso, trans-histórico". Nesse tempo imaginário, o ritmo é ditado segundo uma concepção própria e exclusiva de cada história. Nesse sentido, o ser humano conserva hoje, "resíduos de um comportamento mitológico (...). Os traços de tal comportamento mitológico revelam-se igualmente no desejo de reencontrar a intensidade com que se viveu, ou conheceu, uma coisa pela primeira vez; de recuperar o passado longínquo, a época beatífica do 'princípio' ”.

O paralelo traçado aqui, entre literatura e mito, discurso teórico e logos, estende-se até o valor de verdade pretendido por cada uma dessas formas de pensamento cognitivo. Na antiguidade, como foi exposto, o mito era tratado por fábulas sem teor de verdade, enquanto o logos tinha a pretensão de revelá-la. Modernamente, considera-se que os argumentos empregados por uma teoria visam convencer alguém de sua veracidade, apelando para procedimentos que estabeleçam provas formais e empíricas. As histórias literárias, por sua vez, procuram, de um modo geral, sustentar semelhanças com a vida, sua verossimilhança, e não verdade. A literatura, como uma invenção dos romancistas e dramaturgos modernos, imagina um contexto feito de realidades psíquicas dos personagens, deixando o mundo "real" como pressuposto ou implícito. Essa imaginação produz histórias envolventes e críveis, mas sem compromisso com a verdade.

 O Discurso Teórico

 O argumento lógico, que caracteriza o discurso teórico, tem uma função diferente da história bem contada. De acordo com o psicólogo Jerome Bruner, autor de Realidade Mental, Mundos Possíveis, o modo de pensamento lógico-científico "tenta preencher o ideal de um sistema formal e matemático de descrição e explicação". Conceitos e categorias usados são relacionados uns com os outros, de modo que encontrem seu exato lugar num sistema formal. A intuição do teórico, diferente da imaginação poética, procura revelar as conexões formais, para depois prová-las de uma maneira formal ou concreta, apresentando um exemplo empírico. Em suma, o discurso teórico trabalha com causas gerais e como elas são constituídas. Nesta tarefa, utiliza-se de procedimentos que visam garantir uma referência comprovável, que também possa ser testada empiricamente.

A linguagem do cientista está sempre preocupada em atender às exigências do critério cético apontado antes. Pode-se dizer que a ciência também constrói mundos possíveis, imaginando fatos com os quais a teoria tem que considerar. Enquanto a literatura não tem a preocupação de comprovar suas conclusões, a ciência vai mais além, predizendo algo que supostamente pode ser provado como certo, apesar de toda especulação. Numa frase, o discurso teórico ergue pretensões de verdade que podem ser falsificadas por um exame qualquer, enquanto as histórias erguem pretensões de verossimilhança que não podem ser negadas, mas aceitas ou não pelos leitores.

Não obstante, eventualmente, um escritor de romance pode vir a ultrapassar essas limitações e pretender, com suas histórias, passar subsumidamente uma teoria sobre o mundo e as relações humanas com teor de verdade. Por outro lado, os cientistas, ao elaborarem suas teorias, por vezes, são forçados a tratarem de temas que não são passíveis de falsificação, quando, por exemplo, um historiador apela para as intenções e sentimentos de um certo personagem histórico, a fim de explicar uma das causas de certo acontecimento; ou quando um físico se vale de argumentos antrópicos, isto é, quando ele afirma que sua teoria não pode estar errada porque senão não seria possível perceber o mundo tal como o percebemos, segundo seu estágio atual e a nossa capacidade de conhecê-lo.

Jerome Bruner conta que o economista Robert Heilbroner observou certa vez que, quando as previsões baseadas em teoria econômica falham, ele e seus colegas passam a contar histórias sobre administradores japoneses, sobre a "cobra" de Zurich, sobre a "determinação" do Banco da Inglaterra de impedir a queda da libra esterlina (...)

Isso mostra que "as narrativas podem ser o último recurso dos teóricos econômicos", pois, afinal, elas constituem a vida das pessoas e seu comportamento cotidiano, objetos do estudo de economistas. Assim, tanto a literatura e discurso teórico passam a entrelaçarem-se inevitavelmente.

Recapitulando, tanto o discurso teórico, como a literatura, a despeito de todos os esforços de categorização de suas estruturas e características, continuam tão envolvidos, um com o outro, quanto estavam na origem da oposição entre mitos e logos, na longínqua civilização helênica clássica. Talvez como para provar o que dizem Eliade e Bruner, de ponto de vistas diferentes, isto é que a necessidade do envolvimento humano pelas narrativas faça parte inseparável de sua própria condição e que tudo que o ser humano faz ou pensa está inserido irremediavelmente numa história.

 Bibliografia

 BARROW, J. D. Teorias de Tudo; trad. MªLuíza X. De A. Borges. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

BRUNER, J. Realidade Mental, Mundos Possíveis; trad. Marcos A. G. Domingues. - Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Antigos; trad. - Brasília: Unb, 1987.

ELIADE, M. Mito e Realidade; trad. Pola Civelli. - São Paulo: Perspectiva, 1972.

SMITH, P. J. "Wittgenstein e o Pirronismo", in Analytica, vol. 1, n° 1. - Rio de Janeiro: UFRJ, 1993.

QUINE, W. v. O. "Realidade Ontológica", in Ensaios; trad. Osvaldo Porchat. - São Paulo: Abril Cultural, 1985.

Notas

1. Veja QUINE, W. v. O. "Realidade Ontológica", in Ensaios, II, pp. 146/7.

2. Veja DIÓGENES LAÉRCIO. "Pirro", in Vida dos Antigos Filósofos, liv. IX. Também o artigo de SMITH, P. J. "Wittgenstein e o Pirronismo", in Analytica, vol. 1, n° 1, 1993.

3. ELIADE, M. Mito e Realidade, VIII, p. 138.

4. ELIADE, M. Op. Cit., idem, p. 139.

5. ELIADE, M. Idem, ibdem, p.163.

6. ELIADE, M. Ibdem, ibdem, pp. 156/7.

7. ELIADE, M. Ibdem, Ibdem, p. 164.

8. ELIADE, M. Ibdem, ibdem, p. 165.

9. BRUNER, J. "Dois Modos de Pensamento", in Realidade Mental, Mundos Possíveis, p. 13.

10. BRUNER, J. Op. Cit., Idem, p. 45.

BRUNER, J. Idem, ibdem, p.45.