AULA 5 - A REJEIÇÃO DO SENSO COMUM

13/04/2010 17:02

 

As questões de conteúdo filosófico não são exclusividades apenas de uma forma de conhecimento chamado filosofia. De uma certa maneira, seja através de mitos ou de teorias ingênuas, cada um desenvolve sua própria explicação sobre o mundo, os temas propostos pela metafísica e pela ética também são abordados por um tipo de interpretação caracterizada como senso comum. Por senso comum, entende-se aquelas explicações aceitas por um determinado grupo de pessoas, sem que elas passem por um exame detalhado que as problematizem ou questionem.

Fatores como crenças, desejos, apego à tradição histórica ou influências sociais fazem com que, mesmo depois do advento da filosofia, ainda persista na maior parte dos seres humanos uma aceitação das coisas tais como elas são, quando não se cai em superstições. Longe de ser uma posição comodista, o apego ao senso comum decorre da falta de motivos fortes para a fomentação de dúvidas sobre as noções dominantes que a maioria das pessoas têm como certas. De fato, só quando ocorre uma sucessão de fenômenos contrários as teses da maioria é que se passa a duvidar da eficácia de uma determinada opinião generalizada. Neste instante, é que se tenta encontrar outras explicações que acomodem aquilo que está fora da ordem ao conjunto de crenças e desejos partilhados pelo grupo social.

Jerome Bruner, em "Castelos Possíveis", chamou atenção para o fato de cada indivíduo possuir um modelo padrão sobre o mundo. Por causa isso, o fator surpresa exigiria um esforço, por parte das pessoas, de integrar toda informação inesperada ao modelo constituído em suas mentes(1). Graças a esse esforço generalizado na espécie de interpretar os fenômenos à luz de uma teoria doméstica própria de cada um, é que ao longo da história poucos foram aqueles que se atreveram a se afastar dessa forma ingênua de encarar o mundo. Eis porque, são poucos os filósofos e muitos aqueles que se detém numa forma de saber pré-filosófico: o senso comum. Entretanto, por menor que fosse o número daqueles preocupados em ir além do entendimento vulgar, nada os impediu de considerar o senso comum como uma espécie de "primo-pobre" da filosofia. Isto é uma forma de conhecimento bruto sobre as coisas que precisava ser ajudada e aperfeiçoada pelo rigor e exatidão do pensamento filosófico, a fim de evitar a indução de falsas conclusões, a partir de observações precipitadas, que poderiam engendrar iniciativas desastrosas.

A Crítica ao Senso Comum

Não são raros os casos em que as crenças do senso comum produziram comportamento preconceituosos, com base numa postura dogmática diante da compreensão dos fenômenos. Durante muito tempo, acreditou-se que o Sol girava em torno da Terra, que uma determinada raça fosse superior a outra, na influência dos astros nas vidas das pessoas etc. Não raro, o radicalismo em torno dessas crenças levou à condenação de pessoas que foram perseguidas pelo simples fato de criticá-las ou por se enquadrarem como hereges ou membros de uma etnia inferior. Muitas guerras foram e ainda são travadas devido ao preconceito religioso e cultural.

As razões que fazem com que os filósofos critiquem o senso comum estão, portanto, relacionadas com a falta de tolerância e critérios rigorosos para fundamentação de qualquer tipo de conhecimento. O senso comum constrói suas teses a partir de um método indutivo, pelo qual a regularidade da ocorrência de certos fenômenos na natureza geram um hábito de se acreditar que se determinadas condições estão presentes, logo se seguirá um evento a elas relacionado. Por exemplo, se o céu fica coberto de nuvens cinzentas é sinal que vai chover; onde há fumaça, há fogo etc. A relação causal gerada por esse hábito é geralmente aceita pelo senso comum de modo acrítico, como se fosse uma lei natural das coisas. O senso comum não se preocupa em apresentar provas diretas que validem suas hipóteses, segundo um método de verificação empírica, tais como a falsificação da experiência, exigida pelas teorias científicas contemporâneas.

Desse modo, é pela persistência de um hábito e não pela validação de um conhecimento seguro que o senso comum gera seus enunciados. Esse hábito faz parte da constituição de cada um, assim como os sentidos pelos quais as informações do meio ambiente chegam ao sistema nervoso central. Por conta disso, às vezes, as informações que entram na mente humana são tão complexas que provocam um conflito de interpretações por parte do indivíduo.

No âmbito do conhecimento dos objetos, a simples observação de uma torre ao longe não permite dizer com certeza se ela é de base quadrada, triangular ou circular. Apenas uma experiência mais apurada possibilitaria a confirmação da forma correta da edificação. O senso comum não pretende que seu conhecimento seja exaustivo e, nessa condição primária, aceita sem mais esforços as primeiras explicações que lhe ocorrem, segundo um modelo interno pré-estabelecido. O questionamento desse modelo só pode ser feito por uma mudança de atitude típica da Filosofia.

Cabe à filosofia fazer a crítica dos modelos padrões do senso comum, permitindo que uma investigação mais apropriada proporcione um conhecimento mais fidedigno e que permita fazer previsões mais precisas. Quanto ao conhecimento da natureza, as experiências exaustivas e as contra–provas são práticas que fornecem elementos para constatação da verdade ou falsidade de uma proposição, ainda que provisória. Quanto ao conhecimento da melhor forma de ação, a filosofia exige do senso comum a sustentação da validade de suas normas, de acordo com parâmetros de universalização de aplicação da norma. Nesse sentido, o conhecimento deve avançar da simples aceitação de práticas estabelecidas pela tradição, até a formulação de regras de conduta que possam ser avaliadas a partir de um ponto de vista moral, do qual os interesses de todos concernidos sejam levados em conta.

Além do senso comum

O descontentamento com relação à orientação adotada, tendo por base inclinações, crenças desejos e hábitos, é, então, um dos principais motivos para o desenvolvimento de uma crítica racional com características filosóficas. Muito embora, vários pensadores tenham procurado solucionar os impasses impostos ao senso comum de maneiras diferentes. Os pré-socráticos tentavam encontrar na natureza um princípio comum que ordenasse todas as coisas. Os platônicos acreditavam que o conhecimento só se daria depois do verdadeiro resgate das idéias pré-existentes às coisas. Enquanto os aristotélicos procuravam extrair do entendimento das causas e dos vários significados de "ser", aquele princípio primeiro de tudo.

Modernamente, René Descartes inaugurou um método científico a partir de uma dúvida generalizada de todo conhecimento aceito pelo senso comum e adquirido por meio dos sentidos. Em Discurso do Método (1637), Descartes parte da constatação de que a capacidade de julgar é uma coisa inerente e igual em todos os seres humanos. O fato dela não ser bem aplicada é que, ao seu ver, permitiria que surgissem as divergências e os vícios aos quais o ser humano está sujeito(2). Por causa disso ele propõe um método de investigação que, na sua obra seguinte (Meditações,1641), parte de uma dúvida metódica que questiona toda forma de conhecimento adquirida a partir de informações intermediadas pelos sentidos e percepções. Com isso ele tenta encontrar exclusivamente na própria razão o único conhecimento livre das distorções impostas pela experiência, sobre o qual todos os conhecimentos verdadeiros serão fundados.

Assim, todas aquelas verdades assumidas pelo senso comum, que fossem contraditas pela observação apurada da natureza e pelo entendimento, deveriam ser postas de lado, em função de uma verdade que pudesse ser revelada sem a influência dos sentidos ou de qualquer crença e desejo. O método proposto por Descartes é considerado um marco do pensamento ocidental, sendo a ele atribuído a inauguração da Filosofia moderna, fundada no racionalismo. Ao contrário de toda tradição anterior, Descartes voltou-se para aquela capacidade natural que cada um possui e procurou descobrir, fazendo uso apenas da razão, o fundamento da verdade, independente do senso comum.

A influência do método cartesiano só foi igualada, no pensamento moderno, pelo ceticismo empírico exposto por David Hume (1711-1776) na sua Investigação Sobre o Entendimento Humano (1748). Aqui, Hume fez uma crítica da ligação necessária que a razão humana costuma produzir entre os eventos na natureza sob um suposto princípio de causalidade. Para ele, o hábito e não o raciocínio era o princípio que fazia com que se esperasse a renovação de um ato, tendo em mente a repetição anterior do mesmo ato. Assim, "toda crença numa questão de fato ou de existência real deriva de algum objeto presente à memória ou aos sentidos, e de uma conjunção habitual entre esse objeto e algum outro"(3). Isso explicaria porque, por mais exatas que fossem as observações - seja do senso–comum, seja das ciências -, as especulações estariam sempre sujeitas à duvida e à incerteza. Pois não haveria algo no mundo que determinasse o entendimento humano, além de uma aparente regularidade na natureza. Haveria tão somente um hábito não racional de relacionar uma coisa com a outra, sem qualquer explicação plausível, senão o fato de constituir a natureza humana.

As ponderações de Hume tiveram grande impacto na filosofia de Kant. Este, numa passagem dos Prolegômenos (1783), reconhece que tinha sido despertado do sono dogmático pelas palavras de Hume(4). Kant logo percebeu que nem o senso comum, nem a metafísica mais apurada de sua época poderia satisfazer o verdadeiro conhecimento da coisa em si. Isso porque, a razão teria limites insuperáveis para atingir esse grau de conhecimento, uma vez que a percepção das coisas se daria por intermédio da sensibilidade, formada pelos sentidos do tempo e espaço. Dada essas limitações, os objetos na natureza manifestar-se-iam sempre como fenômenos, sujeitos a uma intuição sensível que por si só não pode atingir a essência das coisas nelas mesmas. Ao senso comum, então, deveria se associar uma crítica da razão pura que apontasse essas limitações e o grau de conhecimento possível obtido pelo ser humano. Aspecto que o senso comum por si só não é capaz de demonstrar, já que ele possui uma tendência a formular enunciados dogmáticos que não são postos à prova e à crítica racional.

Em suma, todo ataque da filosofia ao senso comum concentra-se nestes três fatores representados por esses filósofos. O primeiro é a distorção dos dados de entrada fornecidos pelo meio ambiente e que passam pelos sentidos. O segundo diz respeito à constituição do ser humano que relaciona de modo necessário um evento a uma causa. E o terceiro aponta as limitações da razão em formular juízos empíricos que revelem a coisa em si, na forma dogmática.

É certo que sempre que o senso comum esbarra com fenômenos contraditórios, segundo um modelo padrão pré-estabelecido, cada um procura encontrar uma explicação com o intuito de acomodar as ocorrências extraordinárias sob a sua perspectiva. Quando isso não acontece, há uma forte tendência à criação de superstições ou explicações míticas sobre o mundo. Por outro lado uma postura que tente investigar e propor uma nova teoria com base em testes, argumentos e contra–argumentos só pode ser exercida fora do domínio do senso comum. O âmbito adequado para essa investigação seria próprio da filosofia e das ciências empíricas.

Bibliografia

BRUNER, J. Realidade Mental e Mundos Possíveis; trad. Marcos A. G. Domingues. - Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

DESCARTES, R. Discurso do Método; trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. - São Paulo: Abril Cultural, 1983.

________, _. Meditações; trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. - São Paulo: Abril Cultural, 1983.

HUME, D. Investigações Sobre o Entendimento Humano; trad. Leonel Vallandro. - São Paulo: Abril Cultural, 1980.

KANT, I. Textos Selecionados; trad. Paulo Quintela e outros. - São Paulo: Abril Cultural, 1980.

Notas

1. Veja BRUNER, J. "Castelos Possíveis", in Realidade Mental e Mundos Possíveis.

2. Veja DESCARTES, R. Discurso do Método, primeira parte.

3. HUME, D. Investigação Sobre o Entendimento Humano, seç V, § 38.

Ver KANT, I. Prolegômenos; in Textos Selecionados, p. 10.